Interpretado por historiador brasileiro, o pensamento de Hannah Arendt é tema de livro que procura cruzar a trajetória de vida filósofa judia com seu modo de ver o mundo ao redor
Publicado há cerca de três anos, o pequeno livro escrito por Eduardo Jardim provoca impacto pela honestidade intelectual e pela paixão com que dedica todas as páginas ao pensamento de Hannah Arendt, a judia alemã que escreveu As origens do Totalitarismo (1951) e Eichmann em Jerusalém (1963), entre outros. A exemplo do amor e da fé - sentimentos profundos que segundo a filósofa fazem o homem sentir-se vivo em sua dimensão privada – o autor parece pinçar em toda a trajetória pessoal e intelectual da escritora aquilo que ela possui de mais atemporal, as experiências filosóficas cuja intensidade reside no sentimento de pertencimento e identificação que provocam no leitor.
Do começo ao fim, da crise que faz nascer as primeiras reflexões de Arendt sobre a banalidade do mal, ao novo início que ela vislumbra diante das revoluções modernas e perto de sua própria morte, Eduardo Jardim faz pulsar o presente sem mencioná-lo. Aos poucos vai oferecendo sentidos múltiplos às ideias de Hannah Arendt, criando através de teoria histórico/filosófica aquilo que ela teria proposto como condição sine qua non para “a existência de objetos belos: a comunicabilidade”. O livro torna públicos e acessíveis sentidos menos aparentes e subjetivos para as coisas do mundo, a fim de que sejam submetidos também à esfera pública como único lugar em que podem adquirir sentido e validade.
“Todas as mágoas são suportáveis quando fazemos delas uma história ou contamos uma história a seu respeito”, diria Arendt acerca de sua reconciliação com um mundo capaz de permitir a existência dos regimes totalitários como o nazismo, a sociedade de massas, e a falência do senso comum como um norteador de caráter “sensualista” para o juízo individual. Desde a revolução científica no início do século XVII, a crescente perda de confiança na capacidade sensível e comum de compreendera realidade, teria permitido aos homens uma existência crescentemente introspectiva, individualista, descolada de referências supostamente plurais para a vida em sociedade.
Nesse sentido, compreender não é um verbo fortuito, mas um termo para o qual Arendt parece ter-se dedicado ao longo da vida e que no livro adquire nova existência. A compreensão seria uma resposta humana aos acontecimentos singulares, a atividade que permite dotar esses acontecimentos de significados. Estes, por sua vez, estariam simultaneamente na base da necessidade de memória e da capacidade de prosseguir, de superar o que passou, “reconciliando-se” com os dias. A compreensão “ensina a lidar com o que irrevogavelmente passou e reconciliar-se com o que inevitavelmente existe”. Diferente da atenção dispensada às tarefas do cotidiano, tanto quanto daquela que move o homem apaixonado, a atividade de compreender demandaria um esforço de amizade por si mesmo, um estado de quietude suficiente para que um diálogo consigo mesmo seja estabelecido sem finalidade definida, sem uso instrumental, sem a vaidade e os interesses pessoais que em alguma medida marcam o que se entende hoje por elaborações e sofisticadas teorias.
Não se trata também da solidão, “quando o indivíduo sente-se abandonado até de sua própria companhia”, mas a “harmonia de dois em um”, que, segundo a filósofa, impediria criminosos como Adolf Eichmann – o tenente-coronel da SS nazista acusado e condenado pelo assassinato em massa de judeus durante a Segunda Guerra – de pensar, de formular um juízo refletido sobre suas ações: “A irreflexão de Eichmann tem estreita relação com o fato de ele ter cometido os crimes de que era acusado”.
Uma frase de Santo Agostinho se repete no livro: “O homem foi criado para que houvesse um começo”. Ela perpassa toda a obra de Hannah Arendt, desde sua tese de doutorado, de 1929, O Conceito de Amor em Santo Agostinho. Recebendo de Eduardo Jardim o significado de uma convicção a motivar a pensadora em sua trajetória intelectual: Arendt carregava a crença profunda de que “não cabia se vergar ao fardo dos acontecimentos”. Em Sobre a revolução (1963), por exemplo, ela teria destacado a importância, nas revoluções modernas, do surgimento de formas inéditas de organização e associação de trabalhadores e operários, alternativas aos padrões partidários do fazer político que dariam vida mais genuína ao conceito de política. Seria um novo começo, que a autora, falecida em 1975, não pôde acompanhar por completo, mas cuja riqueza de experiências políticas ela pôde intuir ao ponto de sugerir que suas histórias não se perdessem no esquecimento.
Fascinada pela imprevisibilidade do agir, a Hannah Arendt de Eduardo Jardim – aquela que compreendi – supunha que apenas a memória e a lembrança poderiam impedir que se tornassem definitivas as derrotas do espírito revolucionário em busca de algo novo. E num campo em que é difícil demarcar as linhas entre o individual e o coletivo, o pessoal e o intelectual, a vida e a política, a moça que fugiu de um campo de concentração nazista, clamou por uma relação com o passado em que o perdão fizesse sentido. Não apenas como base filosófica de figuras jurídicas como as variadas formas de anistia, mas como o único recurso à disposição dos sujeitos abertos à faculdade humana de iniciar de novo, de recomeçar, de levar á frente àquilo que jamais poderá ser desfeito.
Livro: Hannah Arendt: pensadora da crise e de um novo início.
Autor: Eduardo Jardim.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, 160 p.
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