História geral da África, I: Metodologia e pré-história da África /
editado por Joseph Ki‑Zerbo. – 2.
ed. rev. – Brasília : UNESCO, 2010. p.169- 212.
FICHAMENTO

Quando falamos de tradição em relação à história africana, referimo-nos à
FICHAMENTO

Quando falamos de tradição em relação à história africana, referimo-nos à
tradição
oral [...] p. 167
Essa
herança ainda não se perdeu e reside na memória da última geração de grandes
depositários, de quem se pode dizer são a memória viva da África. p. 167
Para alguns
estudiosos, o problema todo se resume em saber se é possível conceder à
oralidade a mesma confiança que se concede à escrita [...]. p. 168
Antes de
colocar seus pensamentos no papel, o escritor ou o estudioso mantém um diálogo
secreto consigo mesmo. Antes de escrever um relato, o homem recorda os fatos
tal como lhe foram narrados ou, no caso de experiência própria, tal como ele
mesmo os narra. p. 168
Nada prova
a priori que a escrita resulta em um relato da realidade mais fidedigno do que
o testemunho oral transmitido de geração a geração. p. 168
E, pois,
nas sociedades orais que não apenas a função da memória é mais desenvolvida,
mas também a ligação entre o homem e a Palavra é mais forte. p. 168
Lá onde não
existe a escrita, o homem está ligado à palavra que profere. Está comprometido
por ela. Ele é a palavra, e a palavra encerra um testemunho daquilo que ele é.
p. 168
A própria
coesão da sociedade repousa no valor e no respeito pela palavra. p. 168
Inúmeros
fatores – religiosas, mágicos ou sociais – concorrem, por conseguinte, para
preservar a fidelidade da transmissão oral. p. 169
Se
formulássemos a seguinte pergunta a um verdadeiro tradicionalista africano: “O
que é tradição oral?”, por certo ele se sentiria muito embaraçado. Talvez respondesse
simplesmente, após longo silêncio: “É o conhecimento total”. p. 169
Contrariamente
ao que alguns possam pensar, a tradição oral africana, com efeito, não se
limita a histórias e lendas, ou mesmo a relatos mitológicos ou históricos, e os
griots estão longe de ser seus únicos guardiães e transmissores qualificados. p.
169
A tradição
oral é a grande escala da vida, e dela recupera e relaciona todos os aspectos. p.
169
Dentro da
tradição oral, na verdade, o espiritual e o material não estão dissociados. p.
169
Ela é ao
mesmo tempo religião, conhecimento, ciência natural, iniciação à arte,
história, divertimento e recreação, uma vez que todo pormenor sempre nos
permite remontar à Unidade primordial. p. 169
Fundada na
iniciação e na experiência, a tradição oral conduz o homem à sua totalidade e,
em virtude disso, pode -se dizer que contribuiu para criar um tipo de homem
particular, para esculpir a alma africana. p. 169
A tradição
bambara do Komo ensina que a Palavra, Kuma, é uma força fundamental que emana
do próprio Ser Supremo, Maa Ngala, criador de todas as coisas. p. 170
Ela é o
instrumento da criação: “Aquilo que Maa
Ngala diz, é!”, proclama o chantre do deus Komo. p. 170
Síntese de
tudo o que existe, receptáculo por excelência da Força suprema e confluência de
todas as forças existentes, Maa, o Homem, recebeu de herança uma parte do poder
criador divino, o dom da Mente e da Palavra. p. 171
Iniciado
por seu criador, mais tarde Maa
transmitiu a seus descendentes tudo o que havia aprendido, e esse foi o início
da grande cadeia de transmissão oral iniciatória da qual a ordem do Komo (como as ordens do Nama, do Kore, etc.,no Mali) diz -se
continuadora. p. 171
Tendo Maa Ngala criado seu interlocutor, Maa, falava com ele e, ao mesmo tempo, dotava-o
da capacidade de responder. Teve início o diálogo entre Maa Ngala, criador de
todas as coisas, e Maa, simbiose de todas as coisas. p. 171
A tradição
africana, portanto, concebe a fala como um dom de Deus. Ela é ao mesmo tempo
divina no sentido descendente e sagrada no sentido ascendente. p. 172
Maa Ngala, como se
ensina, depositou em Maa as três
potencialidades do poder, do querer e do saber. [...] p. 172
Vivificadas
pela Palavra divina, essas forças começam a vibrar. p. 172
Numa
primeira fase, tornam-se pensamento; numa segunda, som; e, numa terceira, fala.
p. 172
A fala é,
portanto, considerada como a materialização, ou a exteriorização, das vibrações
das forças. p. 172
“Quando Maa Ngala fala, pode-se ver, ouvir, cheirar,
saborear e tocar a sua fala”. p. 172
Trata-se de
uma percepção total, de um conhecimento no qual o ser se envolve na totalidade.
p. 172
É por isso
que no universo tudo fala: tudo é fala que ganhou corpo e forma. p. 172
Em
fulfulde, a palavra que designa “fala” (haala)
deriva da raiz verbal hal, cuja ideia
é “dar força” e, por extensão, “materializar”. p. 172
A tradição peul ensina que Gueno, o Ser Supremo, conferiu força a Kiikala, o primeiro homem, falando com ele. p. 172
“Foi a
conversa com Deus que fez Kiikala
forte”, dizem os Silatigui (ou mestres
iniciados peul). p. 172
Se a fala é
força, é porque ela cria uma ligação de vaivém (yaa -warta, em fulfulde) que gera movimento e ritmo, e, portanto,
vida e ação. p. 172
Este
movimento de vaivém é simbolizado pelos pés do tecelão que sobem e descem, como
veremos adiante ao falarmos sobre os ofícios tradicionais. p. 172
(Com
efeito, o simbolismo do ofício do tecelão baseia-se inteiramente na fala
criativa em ação). p. 172
A fala pode
criar a paz, assim como pode destruí-la. É como o fogo. Uma única palavra
imprudente pode desencadear uma guerra, do mesmo modo que um graveto em chamas
pode provocar um grande incêndio. p. 173
Diz o
adágio malinês: “O que é que coloca uma coisa nas devidas condições (ou seja, a
arranja, a dispõe favoravelmente)? A fala. O que é que estraga uma coisa? A
fala. O que é que mantém uma coisa em seu estado? A fala”. p. 173
Por essa
razão a fala, por excelência, é o grande agente ativo da magia africana. p. 173
Deve-se ter
em mente que, de maneira geral, todas as tradições africanas postulam uma visão
religiosa do mundo. p. 173
No interior
dessa vasta unidade cósmica, tudo se liga, tudo é solidário, e o comportamento
do homem em relação a si mesmo e em relação ao mundo que o cerca (mundo
mineral, vegetal, animal e a sociedade humana) será objeto de uma
regulamentação ritual muito precisa cuja forma pode variar segundo as etnias ou
regiões. p. 173
Na Europa,
a palavra “magia” é sempre tomada no mau sentido, enquanto que na África
designa unicamente o controle das forças, em si uma coisa neutra que pode se
tornar benéfica ou maléfica conforme a direção que se lhe dê. p. 173
[...]“Nem a
magia nem o destino são maus em si. A utilização que deles fazemos os torna
bons ou maus”. p.173
Assim como
a fala divina de Maa Ngala animou as forças cósmicas que dormiam,
estáticas, em Maa, assim também a
fala humana anima, coloca em movimento e suscita as forças que estão estáticas
nas coisas. p. 173
Na tradição
africana, a fala, que tira do sagrado o seu poder criador e operativo, encontra
- se em relação direta com a conservação ou com a ruptura da harmonia no homem
e no mundo que o cerca. p. 174
Por esse
motivo a maior parte das sociedades orais tradicionais considera a mentira uma verdadeira
lepra moral. p.174
Na África
tradicional, aquele que falta à palavra mata sua pessoa civil, religiosa e
oculta. p. 174
Ele se separa de si mesmo e da sociedade.
Seria preferível que morresse, tanto para si próprio como para os seus. p. 174
“Aquele que
corrompe sua palavra, corrompe a si próprio”, diz o adágio. p.174
Quando
alguém pensa uma coisa e diz outra, separa-se de si mesmo. Rompe a unidade
sagrada, reflexo da unidade cósmica, criando desarmonia dentro e ao redor de
si. p. 174
Agora podemos
compreender melhor em que contexto mágico-religioso e social se situa o
respeito pela palavra nas sociedades de tradição oral, especialmente quando se
trata de transmitir as palavras herdadas de ancestrais ou de pessoas idosas.
p. 174
Para eles,
a mentira não é simplesmente um defeito moral, mas uma interdição ritual cuja
violação lhes impossibilitaria o preenchimento de sua função. p. 175
De modo
geral, a tradição africana abomina a mentira. Diz-se: “Cuida–te para não te
separares de ti mesmo. É melhor que o mundo fique separado de ti do que tu
separado de ti mesmo”. p. 175
Mais do que
todos os outros, os Doma sujeitam-se a esta obrigação, pois, enquanto Mestres
iniciados são os grandes detentores da Palavra, principal agente ativo da vida
humana e dos espíritos. p. 177
Se o
tradicionalista-doma é detentor da Palavra, os demais homens são os depositários
do palavrório… p.177
[...] um Mestre
da faca dogon, do país de Pignari (departamento de Bandiagara) [...], certa
vez, foi forçado a mentir a fim de salvar a vida de uma mulher procurada que
ele havia escondido em sua casa. Após o incidente, renunciou espontaneamente ao
cargo, supondo que já não mais preenchia as condições rituais para assumi -lo
lidimamente. p. 178
Independentemente
da interdição da mentira, ele pratica a disciplina da palavra e não a utiliza
imprudentemente. Pois se a fala, como vimos, é considerada uma exteriorização
das vibrações de forças interiores, inversamente, a força interior nasce da
interiorização da fala. p. 178
Falar pouco
é sinal de boa educação e de nobreza. p. 178
Não se deve
confundir os tradicionalistas -doma, que sabem ensinar enquanto divertem e se
colocam ao alcance da audiência, com os trovadores, contadores de história e
animadores públicos, que em geral pertencem à casta dos Dieli (griots) ou dos Woloso (“cativos de casa”). p. 178
“O griot”, como se diz, “pode ter duas
línguas”. p. 178
Se o
contador de histórias cometesse um erro ou esquecesse algo, sua testemunha o
interromperia: “Homem! Presta atenção quando abres a boca!” Ao que ele
responderia: “Desculpe, foi minha língua fogosa que me traiu”. p. 181
Um
tradicionalista-doma que não é ferreiro de nascença, mas que conhece. p. 181
Em todos os
ramos do conhecimento tradicional, a cadeia de transmissão se reveste de uma
importância primordial. Não existindo transmissão regular, não existe “magia”,
mas somente conversa ou histórias. p. 181
Além do
valor moral próprio dos tradicionalistas-doma e de sua adesão a uma “cadeia de
transmissão”, uma garantia suplementar de autenticidade é fornecida pelo
controle permanente de seus pares ou dos anciãos que os rodeiam, que velam zelosamente
pela autenticidade daquilo que transmitem e que os corrigem no menor erro, como
vimos no caso de Danfo Sine. p. 181
O grau de
evolução do adepto do Komo não é
medido pela quantidade de palavras aprendidas, mas pela conformidade de sua
vida a essas palavras. p. 182
Se um homem
sabe apenas dez ou quinze palavras do Komo,
e, as vive, então ele se torna um valoroso adepto do Komo dentro da associação. p. 182
A educação
tradicional, sobretudo quando diz respeito aos conhecimentos relativos a uma
iniciação, liga-se à experiência e se integra à vida. p. 182
Além do
ensino esotérico ministrado nas grandes escolas de iniciação – por exemplo, o Komo ou as demais já mencionadas –, a
educação tradicional começa, em verdade, no seio de cada família, onde o pai, a
mãe ou as pessoas mais idosas são ao mesmo tempo mestres e educadores e
constituem a primeira célula dos tradicionalistas. p. 183
São eles
que ministram as primeiras lições da vida, não somente através da experiência,
mas também por meio de histórias, fábulas, lendas, máximas, adágios, etc. Os
provérbios são as missivas legadas à posteridade pelos ancestrais. Existe uma
infinidade deles. p.183
[...] o
ensinamento não é sistemático, mas ligado às circunstâncias da vida. Este modo
de proceder pode parecer caótico, mas, em verdade, é prático e muito vivo. A
lição dada na ocasião de certo acontecimento ou experiência fica profundamente gravada
na memória da criança. p. 183
Na África,
tudo é “História”. A grande História da vida compreende a História das Terras e
das Águas (geografia), a História dos vegetais (botânica e farmacopeia), a
História dos “Filhos do seio da Terra” (mineralogia, metais), a História dos
astros (astronomia, astrologia), a História das águas, e assim por diante. p.
184
De todas as
“Histórias”, a maior e mais significativa é a do próprio Homem, simbiose de
todas as “Histórias”, uma vez que, segundo o mito, foi feito com uma parcela de
tudo o que existiu antes dele. p. 184
Os
ensinamentos referentes ao homem baseiam-se em mitos da cosmogonia,
determinando seu lugar e papel no universo e revelando qual deve ser sua
relação com O mundo dos vivos e dos mortos. p. 184
O aprendiz
não deve fazer perguntas. Deve apenas observar com atenção e soprar. Esta é a
fase “muda” do aprendizado. À medida que vai avançando na assimilação do
conhecimento, o aprendiz sopra em ritmos cada vez mais complexos, cada um deles
possuindo um significado. p. 188
O aprendiz
não deve fazer perguntas. Deve apenas observar com atenção e soprar. Esta é a
fase “muda” do aprendizado. À medida que vai avançando na assimilação do
conhecimento, o aprendiz sopra em ritmos cada vez mais. complexos, cada um deles
possuindo um significado. p. 189
Uma vez que
a sociedade africana está fundamentalmente baseada no diálogo entre os
indivíduos e na comunicação entre comunidades ou grupos étnicos, os griots são os agentes ativos e naturais
nessas conversações. p. 195
Autorizados
a ter “duas línguas na boca”, se necessário podem se desdizer sem que causem ressentimentos.
Isso jamais seria possível para um nobre, a quem não se permite voltar atrás
com a palavra ou mudar de decisão. p. 195
Um griot chega até mesmo a arcar com a
responsabilidade de um erro que não cometeu a fim de remediar uma situação ou
de salvar a reputação dos nobres. p. 195
É
necessário acrescentar, entretanto, que se trata aqui apenas de características
gerais e que nem todos os griots são
necessariamente desavergonhados ou cínicos. p. 195
Pelo
contrário, entre eles existem aqueles que são chamados de dieli -faama, ou seja, “griots
-reis”. De maneira nenhuma estes são inferiores aos nobres no que se refere
à coragem, moralidade, virtudes e sabedoria, e jamais abusam dos direitos que
lhes foram concedidos por costume. p. 195
Em geral
dotados de considerável inteligência, desempenhavam um papel de grande
importância na sociedade tradicional do Bafur
devido à sua influência sobre os nobres e os chefes. p. 195
Um nobre é capaz
de se despojar de tudo o que traz consigo e possui dentro de casa para presentear
a um griot que conseguiu lhe mover os
sentimentos. Aonde quer que vão, estes griots
genealogistas têm a sobrevivência largamente assegurada. p.196
É fácil ver
como os griots genealogistas,
especializados em histórias de famílias e geralmente dotados de memória
prodigiosa, tornaram-se naturalmente, por assim dizer, os arquivistas da
sociedade africana e, ocasionalmente, grandes historiadores. p.197
Mas é
importante lembrarmos que eles não são os únicos a possuir tal conhecimento.
p.197
Os griots historiadores, a rigor, podem ser
chamados de “tradicionalistas”, mas com a ressalva de que se trata de um ramo puramente
histórico da tradição, a qual possui muitos outros ramos. p.197
Quando um
griot conta uma história, geralmente lhe perguntam: “É uma história de dieli ou uma história de doma?” Se for
uma história de dieli, costuma –se dizer:
“Isso é o que o dieli diz!”, e então
se pode esperar alguns embelezamentos da verdade, com a intenção de destacar o
papel desta ou daquela família – embelezamentos que não seriam feitos por um
tradicionalista -doma, que se interessa, acima de tudo, pela transmissão fiel.
p. 198
Um mal-entendido que ainda tem sequela em
alguns dicionários franceses deve ser esclarecido. Os franceses tomavam os dieli, a quem chamavam de “griots”, por feiticeiros (sorcier), o que não corresponde à
realidade. p. 198
O mal-entendido
provavelmente advém da ambivalência do termo francês “griot”, que pode designar
o conjunto dos nyamakala (que incluem
os dieli) e, mais frequentemente, apenas a casta dos Dieli. p. 199
Seja como
for, a importância do dieli não se encontra nos poderes de bruxaria que ele
possa ter, mas em sua arte de manejar a fala, que, aliás, também é uma forma de
magia. p. 199
O grande
genealogista é sempre um grande viajante. Enquanto um griot pode contentar-se em conhecera genealogia da família a que
está ligado, o verdadeiro genealogista – seja griot ou não –, a fim de aumentar seus conhecimentos, deverá necessariamente
viajar pelo país para se informar sobre as principais ramificações de um grupo
étnico, e depois viajar para o exterior para traçar a história dos ramos que
emigraram. p. 202
Dizer
genealogista é dizer historiador, pois um bom genealogista conhece a história,
as proezas e os gestos de todas as personagens que cita ou, pelo menos, das
principais. p. 203
Essa
ciência se encontra na própria base da história da África, pois o interesse
pela história está ligado não à cronologia, mas à genealogia, no sentido de se
poder estabelecer as linhas de desenvolvimento de uma família, clã ou etnia no
tempo e no espaço. p. 203
Ainda hoje
encontramos entre a população muitos conhecedores de genealogia e história que não
pertencem nem à classe dos dieli nem
à dos gaolo. p. 204
Temos aí
uma importante fonte de informações para a história da África, pelo menos ainda
por um certo tempo. Cada patriarca é um genealogista para seu próprio clã, e os
dieli e gaolo vêm frequentemente lhes pedir informações com o propósito de
complementar seus conhecimentos. p. 204
As
peculiaridades da memória africana e as modalidades de sua transmissão oral não
foram afetadas pela islamização, que atingiu grande parte dos países da savana
ou do antigo Bafur. p. 204
[...] o
Islã não adaptou a tradição africana a seu modo de pensar, mas, pelo contrário,
adaptou-se à tradição africana quando – como normalmente ocorria – esta não
violava seus princípios fundamentais. p. 204
A simbiose
assim originada foi tão grande, que por vezes torna-se difícil distinguir o que
pertence a uma ou a outra tradição. p. 204
Grandes
escolas islâmicas puramente orais ensinavam a religião nas línguas vernáculas
(exceto o Corão e os textos que fazem parte da oração canônica). p. 204
Das
crianças que saíam das escolas corânicas a maioria era capaz de recitar de cor
o Corão inteiro, em árabe e no salmo desejado, sem entender o sentido do texto,
o que demonstra a capacidade da memória africana. p. 205
Independentemente
de uma visão sagrada comum do universo e de uma mesma concepção do homem e da
família, encontramos, nas duas tradições, a mesma preocupação em citar as
fontes (isnad, em árabe) e nunca
modificar as palavras do mestre, o mesmo respeito pela cadeia de transmissão
iniciatória (silsila, ou “cadeia”, em
árabe) e o mesmo sistema de caminhos iniciatórios (no Islã, as grandes congregações
Sufi ou Tariga, plural turuq,
cuja cadeia remonta ao próprio Profeta), que tornam possível aprofundar,
através da experiência, aquilo que se conhece pela fé. p. 205
Entre todos
os povos do mundo, constatou-se que os que não escreviam possuíam uma memória
mais desenvolvida. p. 207
Uma das
peculiaridades da memória africana é reconstituir o acontecimento ou a
narrativa registrada em sua totalidade, tal como um filme que se desenrola do
princípio ao fim, e fazê-lo no presente. Não se trata de recordar, mas de
trazer ao presente um evento passado do qual todos participam, o narrador e a
sua audiência. p. 208
Aí reside toda a arte do contador de
histórias. Ninguém é contador de histórias a menos que possa relatar um fato
tal como aconteceu realmente, de modo que seus ouvintes, assim como ele
próprio, tornem -se testemunhas vivas e ativas desse fato. p. 208
Ora, todo
africano é, até certo ponto, um contador de histórias. p. 208
De maneira
geral, a memória africana registra toda a cena: o cenário, os personagens, suas
palavras, até mesmo os mínimos detalhes das roupas. p. 208
Por essa
razão o tradicionalista não consegue “resumir” senão dificilmente.
Resumir uma
cena equivale, para ele, a escamoteá-la. Ora, por tradição, ele não tem o
direito de fazer isso. Todo detalhe possui sua importância para a verdade do
quadro. Ou narra o acontecimento em sua integridade ou não o narra. Se lhe for
solicitado resumir uma passagem ele responderá: “Se não tens tempo para ouvir-me,
contarei um outro dia”. p. 209
Do mesmo
modo, o tradicionalista não tem receio de se repetir. Ninguém se cansa de ouvi-lo
contar a mesma história, com as mesmas palavras, como talvez já tenha contado
inúmeras vezes. A cada vez, o filme inteiro se desenrola novamente. E o evento
está lá, restituído. O passado se torna presente. p. 209
Esta
peculiaridade da memória africana tradicional ligada a um contexto de tradição
oral é em si uma garantia de autenticidade. p. 209
As fichas
imateriais do catálogo da tradição oral são máximas, provérbios, contos,
lendas, mitos, etc., que constituem quer um esboço a ser desenvolvido, quer um
ponto de partida para narrativas didáticas antigas ou improvisadas. p. 209
Para a
África, a época atual é de complexidade e de dependência. Os diferentes mundos,
as diferentes mentalidades e os diferentes períodos sobrepõem-se, interferindo
uns nos outros, às vezes se influenciando mutuamente, nem sempre se
compreendendo. p. 210
Na África o
século XX encontra-se lado a lado com a Idade Média, o Ocidente com o Oriente,
o cartesianismo, modo particular de “pensar” o mundo, com o “animismo”, modo
particular de vivê-lo e experimentá-lo na totalidade do ser. p. 210
O resultado
é que a população, até então governada segundo costumes sagrados que, herdados
de ancestrais, asseguravam a coesão social, não compreende por que está sendo
julgada e condenada em nome de um “costume” que não é o seu, que não conhece e
que não corresponde às realidades profundas do país. p. 210
Para a nova
“inteligentsia” africana, formada em disciplinas universitárias europeias, a
Tradição muitas vezes deixou de viver. São “histórias de velhos”! p. 210
No entanto,
é preciso dizer que, de um tempo para cá, uma importante parcela da juventude
culta vem sentindo cada vez mais a necessidade de se voltar às tradições
ancestrais e de resgatar seus valores fundamentais, a fim de reencontrar suas
próprias raízes e o segredo de sua identidade profunda. p. 210
Por
contraste, no interior da “África de base”, que em geral fica longe das grandes
cidades – ilhotas do Ocidente –, a tradição continuou viva e, [...] grande
número de seus representantes ou depositários ainda pode ser encontrado. p. 211
O grande
problema da África tradicional é, em verdade, o da ruptura da transmissão. p.
211
Nas antigas
colônias francesas, a primeira grande ruptura veio com a guerra de 1914, quando
a maioria dos jovens se alistou para ir combater na França, de onde muitos
nunca retornaram. Estes jovens deixaram o país na idade em que deveriam estar
passando pelas grandes iniciações e aprofundando seus conhecimentos sob a
direção dos mais velhos. p. 211
O fato de
que era obrigatório para homens importantes enviarem seus filhos a “escolas de
brancos”, de modo a separá-los da tradição, favoreceu igualmente esse processo.
p. 211
As escolas,
seculares ou religiosas, constituíram os instrumentos essenciais desta ceifada.
p. 211
Estamos
hoje, portanto, em tudo o que concerne à tradição oral, diante da última
geração dos grandes depositários. p. 211
Justamente
por esse motivo o trabalho de coleta deve ser intensificado durante os próximos
10 ou 15 anos, após os quais os últimos grandes monumentos vivos da cultura
africana terão desaparecido e, junto com eles, os tesouros insubstituíveis de
uma educação peculiar, ao mesmo tempo material, psicológica e espiritual,
fundamentada no sentimento de unidade da vida e cujas fontes se perdem na noite
dos tempos. p. 211
Para que o
trabalho de coleta seja bem-sucedido, o pesquisador deverá se armar de muita
paciência, lembrando que deve ter “o coração de uma pomba, a pele de um crocodilo
e o estômago de uma avestruz”. p. 211
“O coração
de uma pomba” para nunca se zangar nem se inflamar, mesmo se lhe disserem
coisas desagradáveis. Se alguém se recusa a responder sua pergunta, inútil
insistir; vale mais instalar-se em outro ramo. p. 211
Uma disputa
aqui terá repercussões em outra parte, enquanto uma saída discreta fará com que
seja lembrado e, muitas vezes, chamado de volta. “A pele de um crocodilo”, para
conseguir se deitar em qualquer lugar, sobre qualquer coisa, sem fazer
cerimônias. p. 212
Por último,
“o estômago de uma avestruz”, para conseguir comer de tudo sem adoecer ou
enjoar-se. p. 212
A condição
mais importante de todas, porém, é saber renunciar ao hábito de julgar tudo
segundo critérios pessoais. Para descobrir um novo mundo, é preciso
saber esquecer seu próprio mundo, do contrário o pesquisador estará simplesmente
transportando seu mundo consigo ao invés de manter -se “à escuta”. p. 212
Através da
boca de Tierno Bokar, o sábio de Bandiagara, a África dos velhos iniciados
avisa o jovem pesquisador: “Se queres saber quem sou,
Se queres que te ensine o que sei, Deixa um pouco de ser o que tu és e esquece o que sabes”. p. 212
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