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Espaços de Contraste: A Dinâmica do Sagrado e do Profano na Cultura Brasileira Através das Lentes de Roberto da Matta e Mircea Eliade


 

Roberto da Matta, um dos antropólogos brasileiros mais influentes, oferece uma análise penetrante da sociedade brasileira através de suas dicotomias emblemáticas, especialmente na distinção entre “a rua” e “a casa”. Em suas obras, como “Carnavais, Malandros e Heróis” e “A Casa & a Rua”, da Matta explora como esses dois espaços simbolizam esferas opostas, mas complementares da vida social brasileira.

 

A Casa

Para da Matta, a casa simboliza o espaço privado, o santuário da família e das relações pessoais íntimas. É o local de ordem, controle e hierarquia, onde as regras sociais são definidas e mantidas. Na casa, prevalecem os valores da moralidade, da ética e das tradições. É o espaço da proteção e do cuidado, onde os indivíduos são reconhecidos como membros de uma família ou grupo próximo.

 

A Rua

Em contraste, a rua representa o espaço público, o domínio da imprevisibilidade e da desordem. É um lugar onde diferentes classes sociais se encontram e onde os indivíduos estão sujeitos às regras impessoais e muitas vezes arbitrárias da sociedade. Na rua, as relações são mais anônimas, e os comportamentos são menos restritos pelas normas familiares. A rua é também o espaço do carnaval, onde as hierarquias podem ser temporariamente invertidas e onde o comportamento transgressivo é mais tolerado.

 

O Malandro e o Santo

Dentro deste contexto, figuras como o malandro e o santo emergem como arquétipos que negociam os limites e as possibilidades de cada um desses espaços. O malandro é a figura que sabe navegar a ambiguidade da rua; ele é astuto, capaz de manipular as regras sociais para seu próprio benefício, frequentemente escapando das restrições morais impostas pela casa. Por outro lado, o santo, que pode ser literal ou figurativo, representa a idealização das virtudes domésticas e da moralidade, frequentemente associada à proteção e ao amparo dentro do lar.

 

É importante dizer que essas dicotomias exploradas por Roberto da Matta não apenas refletem a complexidade da vida social brasileira, mas também servem como uma crítica das estruturas sociais que perpetuam desigualdades e ambiguidades comportamentais. Através dessas análises, da Matta revela como os brasileiros constantemente negociam seus papéis e identidades entre esses dois mundos, cada um com seus próprios códigos e expectativas.

 

Integrando aqui as ideias de Mircea Eliade sobre o sagrado e o profano com a dicotomia de Roberto da Matta entre a rua e a casa, para obter uma compreensão ainda mais profunda dos espaços sociais e culturais no Brasil. Eliade, um historiador das religiões, destacou a divisão entre o espaço sagrado, que é carregado de significado espiritual e transcendental, e o espaço profano, que é considerado comum e secular.

 

A Casa como Sagrada

Na perspectiva de Eliade, a casa pode ser vista como um espaço sagrado dentro do contexto brasileiro descrito por da Matta. A casa é o centro do mundo familiar, um microcosmo onde os valores, tradições e rituais familiares são preservados e praticados. É um local onde o sagrado é mantido através de práticas diárias, celebrações religiosas e a transmissão de crenças culturais e espirituais. Assim, a casa não é apenas um espaço físico, mas um lugar onde o sagrado se manifesta, oferecendo uma conexão com o transcendente e reforçando a identidade e a continuidade cultural.

 

A Rua como Profana

 Em contraste, a rua, conforme analisada por da Matta, pode ser entendida como um espaço profano. É o local da ordem social mais ampla, do encontro e interação entre diferentes esferas da vida, onde prevalece o secular e o cotidiano. A rua é um espaço de transição, onde as normas e valores sagrados da casa são desafiados ou negociados. O caráter efêmero e fluido da rua reflete a natureza profana do espaço, onde as realidades temporais dominam e a transcendência do sagrado é menos perceptível.

 

 

 

Interseção e Negociação

 A interação entre o sagrado e o profano nos espaços da rua e da casa reflete a constante negociação entre essas esferas. O malandro, por exemplo, pode ser visto como um mediador entre o sagrado e o profano, alguém que transita entre o mundo controlado e moral da casa e o mundo mais caótico e livre da rua. Ele manipula as regras de ambos os mundos para sua vantagem, desafiando a divisão entre o sagrado e o profano.

 

Esta interseção entre as teorias de Eliade e da Matta oferece uma visão rica da vida social e cultural brasileira, destacando como os espaços e as práticas diárias estão impregnados de significados que vão além do imediatamente visível, refletindo a complexa interação entre o sagrado e o profano em constante negociação.

 

Conclusão

 

A análise da dicotomia entre a rua e a casa por Roberto da Matta, combinada com a concepção de Mircea Eliade sobre o sagrado e o profano, proporciona uma visão profunda sobre a organização social e cultural no Brasil. Enquanto da Matta destaca como esses espaços simbolizam diferentes esferas de interação social, refletindo a ordem interna e a imprevisibilidade externa, Eliade enriquece essa visão ao mostrar como esses espaços podem ser entendidos dentro dos conceitos de sacralidade e profanidade.

 

Essa fusão de perspectivas nos permite perceber que os brasileiros vivem em uma constante negociação entre esses dois mundos. A casa, como espaço sagrado, é o coração onde as tradições são guardadas e transmitidas, e onde o indivíduo se sente parte de uma continuidade histórica e espiritual. Já a rua, como espaço profano, representa o palco das experiências cotidianas e das interações impessoais, um lugar de constante transformação e desafio às normas estabelecidas.

 

Assim, compreender essas interações não só esclarece a complexidade das relações sociais no Brasil, mas também revela como o sagrado e o profano moldam e são moldados pela experiência brasileira de navegar entre o pessoal e o público, entre a ordem e a desordem. Portanto, a rua e a casa, sob as lentes de da Matta e Eliade, são mais do que meros espaços físicos: são categorias que organizam a vida, a cultura e a espiritualidade brasileiras em todas as suas ricas e variadas formas.



Paulo Mazarem 

Teólogo, Pesquisador do Fenômeno Religioso e Coordenador da Faculdade Mais de Cristo (FMC). 

 

REFERÊNCIAS:

 

ELIADE, Mircea O Sagrado e o Profano. A essência das religiões; tradução Rogério Fernandes. – 3º. ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.

 

DAMATTA, Roberto. Espaço: Casa, rua e outro mundo: o caso do Brasil. 5ª ed. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 1997. 


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