By Paulo Massarin[1]
1. Introdução
A Semana Santa constitui o ápice do calendário cristão, concentrando em si os principais mistérios da fé cristã: a paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Mais do que uma sequência de ritos, ela representa uma síntese teológica e simbólica da esperança escatológica cristã, sendo vivenciada, reinterpretada e atualizada por distintas tradições religiosas e contextos culturais. Nesse sentido, ultrapassa o domínio litúrgico ou eclesiástico, projetando-se também como fenômeno social, histórico e estético.
Contudo, sua recepção e vivência diferem significativamente entre os católicos, os evangélicos e os indivíduos não religiosos. Essas diferenças não são meramente superficiais ou rituais, mas refletem visões de mundo distintas, formas diversas de conceber o sagrado e múltiplas maneiras de se relacionar com o tempo, a memória e a transcendência. Enquanto para os católicos a Semana Santa está fortemente vinculada a uma teologia sacramental e a uma liturgia dramatizada, no universo evangélico prevalece uma ênfase na interioridade da fé, na centralidade da Palavra e, frequentemente, na desritualização. Já para os sujeitos não religiosos ou os chamados “sem religião”, ela pode adquirir um caráter cultural, turístico ou até mesmo político, revelando a secularização e a pluralidade das sociedades contemporâneas.
O presente artigo busca interpretar essas diferenças à luz de uma abordagem interdisciplinar, mobilizando conceitos da teologia sistemática, da antropologia da religião e da sociologia da cultura. Parte-se da premissa de que os modos de celebrar — ou de ignorar — a Semana Santa dizem tanto sobre a fé quanto sobre a estrutura simbólica e social das comunidades em que esses sujeitos estão inseridos. Assim, este estudo pretende oferecer uma leitura abrangente e crítica da Semana Santa como experiência religiosa, prática cultural e construção identitária nas sociedades ocidentais, com especial atenção aos contextos do Brasil e de Portugal.
2. Perspectiva Católica: Mistério e Encenação Sacramental
No catolicismo, a Semana Santa representa o coração da fé cristã: o mistério pascal. O Papa emérito Bento XVI (Joseph Ratzinger), refletindo sobre a centralidade da liturgia, observa que: “Na cruz, Jesus foi verdadeiramente o Cordeiro que tirou os pecados do mundo. Toda a liturgia pascal se orienta em torno desse evento definitivo da história” (RATZINGER, 2007, p. 74).
A liturgia católica é altamente simbólica e pedagógica. Os ritos — como a Procissão de Ramos, a Missa da Ceia do Senhor, a adoração da cruz e a Vigília Pascal — dramatizam a narrativa da paixão e convidam os fiéis a uma participação mística. Para Victor Turner, tais rituais cumprem uma função social importante: “Os ritos de passagem [...] marcam uma transição liminar, onde o sujeito se desloca entre um estado e outro, participando da regeneração da ordem social” (2005, p. 38).
Em Portugal, a Semana Santa também ocupa lugar de destaque na experiência religiosa e cultural. Cidades como Braga, Óbidos e Castelo de Vide tornam-se palco de encenações intensas e procissões seculares que remontam ao período medieval. Esses eventos, fortemente influenciados pela espiritualidade tridentina, preservam formas litúrgicas e expressões de fé popular que se enraizaram durante a Contra-Reforma (Cf. CHARTIER, 1990).
Segundo António Marujo, jornalista e pesquisador da religião em Portugal, “as procissões da Semana Santa são, simultaneamente, um gesto devocional e uma dramatização pública da fé. Elas operam uma ponte entre o sagrado e o cotidiano, entre a memória histórica e a vivência contemporânea” (MARUJO, 2016, p. 112).
Historicamente, a presença de ordens religiosas como os franciscanos e os jesuítas contribuiu para consolidar essas expressões litúrgicas dramatizadas. Os franciscanos, em especial, foram grandes promotores da devoção à Paixão de Cristo por meio das vias-sacras e dos sermões quaresmais. Já os jesuítas, com seu teatro sacro, incorporaram elementos visuais e emocionais à catequese popular (Cf. O’MALLEY, 2007).
Em suma, a Semana Santa em Portugal, assim como no Brasil, ultrapassa a dimensão estritamente litúrgica. Ela é também patrimônio cultural imaterial, reconhecida por entidades como o Instituto dos Museus e da Conservação (IMC) e alvo de estudos antropológicos e etnográficos. A cidade de Braga, por exemplo, é conhecida como a “Roma portuguesa” devido à sua intensa programação de Semana Santa, que mobiliza comunidades inteiras, grupos artísticos, confrarias e o próprio turismo religioso.
Conforme aponta Isabel Alçada, “estas celebrações conservam uma linguagem simbólica que conecta os vivos com seus antepassados, o tempo presente com o tempo eterno, e a comunidade com o mistério da fé cristã” (2012, p. 89). A encenação da Paixão torna-se, assim, uma forma de narrar e reencenar a identidade cristã no espaço público, promovendo uma teologia vivida e encarnada na história.
3. Perspectiva Evangélica: Palavra, Fé e Simplicidade Litúrgica
Entre os evangélicos, a Semana Santa é ressignificada à luz de uma espiritualidade centrada na Palavra de Deus e na experiência pessoal da salvação. A cruz e a ressurreição são vistas como o eixo do plano redentor, não apenas como eventos históricos, mas como realidades espirituais continuamente atualizadas na vida do crente. Como nos lembra John Stott: “A cruz de Cristo é a mais profunda revelação do amor de Deus, o ponto de convergência entre justiça e misericórdia” (STOTT, 2007, p. 59). Na minha leitura e trajetória acadêmica a ressurreição é o leitmotiv da vida Cristã e o centro do kerigma apostólico, pois se Cristo não ressuscitou vã é a nossa fé nos lembra o apóstolo Paulo (1 Cor 15. 14, 17).
É por isso que no mundo evangélico, a celebração tende a ser menos ritualística e mais voltada à pregação, à leitura bíblica e à edificação da fé. Consideremos que denominações históricas, como presbiterianas, luteranas e batistas, promovem cultos temáticos, estudos exegéticos e reflexões doutrinárias sobre o significado da Páscoa. Já no meio pentecostal e neopentecostal, a ênfase recai sobre a dimensão espiritual do evento pascal: campanhas de oração, períodos de jejum, cultos de cura e libertação são comuns, com foco na vitória da ressurreição sobre todo tipo de escravidão espiritual. Como destaca French Arrington, “o evento pascal é interpretado como uma vitória total sobre o pecado, a morte e as forças malignas, sendo apropriado pela fé” (ARRINGTON, 2006, p. 212).
No entanto é preciso observar que a ausência de um calendário litúrgico rígido não significa ausência de significado, mas sim uma abordagem mais subjetiva, relacional e dinâmica da espiritualidade. A celebração da Páscoa, nos meios evangélicos, é marcada por espontaneidade e contextualização, frequentemente articulando temas como renovação, libertação e missão.
Em Portugal, onde o catolicismo ainda ocupa posição majoritária — com cerca de 80% da população se declarando católica segundo os Censos 2021 —, as comunidades evangélicas permanecem como uma minoria religiosa (entre 0,5% e 1%). Representadas por igrejas históricas, pentecostais e movimentos independentes, essas comunidades frequentemente vivenciam a Semana Santa como oportunidade de afirmação pública da fé protestante. Aproveitando o feriado prolongado e a abertura social à religiosidade nesse período, muitos evangélicos organizam ações evangelísticas, distribuição de literatura cristã e cultos ao ar livre, sobretudo em áreas urbanas. Tais práticas não apenas visam a evangelização, mas também fortalecem a identidade evangélica em um contexto historicamente marcado pelo catolicismo cultural.
Como observa o sociólogo Alfredo Teixeira, “os protestantes em Portugal ocupam uma condição histórica de minoria persistente, cuja visibilidade religiosa se articula com estratégias de presença pública e engajamento social” (TEIXEIRA, 2015, p. 44). Assim, a Semana Santa, longe de ser um evento litúrgico codificado, é vivida como um momento estratégico de missão e testemunho.
Igrejas como a Aliança Evangélica Portuguesa (AEP), bem como comunidades pentecostais de origem brasileira, têm contribuído para uma nova visibilidade evangélica durante a Semana Santa, especialmente em cidades como Lisboa, Porto e Setúbal. Essas expressões refletem a crescente globalização do protestantismo e sua capacidade de dialogar com contextos plurais, oferecendo alternativas à religiosidade tradicional.
4. Perspectiva Não Religiosa: Cultura, Memória e Patrimonialização
Para indivíduos não religiosos, secularizados ou pertencentes a contextos de crescente pluralismo simbólico, a Semana Santa é frequentemente percebida não como evento de fé, mas como manifestação cultural carregada de significados históricos, estéticos e identitários. A laicização das sociedades modernas não eliminou o calendário religioso — mas ressignificou-o dentro de uma lógica cultural, patrimonial e afetiva. A participação nessas celebrações se dá, muitas vezes, não como ato de devoção, mas como imersão em uma tradição coletiva que conecta passado e presente.
Raymond Williams, ao desenvolver o conceito de estrutura de sentimento, oferece uma chave de leitura para esse fenômeno. Para ele, certos modos de sentir, viver e valorizar são herdados por gerações mesmo quando os marcos religiosos originais se dissolvem: “Certas formas culturais permanecem vivas mesmo quando as condições que as originaram já se foram” (WILLIAMS, 2011, p. 132). A Semana Santa, nesse sentido, pode ser vista como um reservatório simbólico onde memória, estética e identidade local se entrelaçam.
No campo antropológico, destaca-se a leitura de Néstor García Canclini, que interpreta a religião — especialmente em suas expressões populares — como um espaço híbrido de tradição e modernidade: “A religiosidade popular, mesmo em contextos laicos, resiste como forma simbólica, como memória compartilhada e como espetáculo social” (CANCLINI, 2008, p. 89). Assim, mesmo os não crentes podem se sentir culturalmente implicados nas procissões, nos autos da Paixão, na arte sacra ou nas festividades locais ligadas à Semana Santa.
Essa patrimonialização da fé se expressa, por exemplo, no turismo religioso, na valorização do artesanato sacro, na preservação de igrejas barrocas e em roteiros históricos vinculados à tradição cristã. Em cidades como Ouro Preto, no Brasil, ou Braga, em Portugal, a Semana Santa torna-se também um evento cívico, com apoio institucional e cobertura midiática. A religião, nesse caso, é absorvida pela lógica da cultura e do espetáculo, ganhando novos sentidos no imaginário coletivo.
Portanto, a experiência da Semana Santa em contextos não religiosos revela a complexidade das práticas simbólicas contemporâneas. Longe de significar ausência de significado, essa apropriação cultural aponta para a permanência de um ethos cristão difuso, transformado em memória viva, estética pública e identidade patrimonial.
5. Conclusão
A Semana Santa, longe de ser um fenômeno unívoco, revela-se como um campo plural de sentidos, práticas e apropriações. Sua força simbólica atravessa fronteiras confessionais, sendo vivida, ressignificada ou mesmo reinterpretada conforme diferentes matrizes culturais, teológicas e sociais. No catolicismo, ela é o ápice do ano litúrgico, com ritos que encarnam o mistério pascal por meio de uma estética sacramental e comunitária. No universo evangélico, especialmente entre protestantes históricos e pentecostais, a Semana Santa assume contornos menos ritualísticos, priorizando a centralidade da Palavra, a vivência pessoal da fé e o testemunho público do evangelho. Já em contextos não religiosos, ela persiste como memória coletiva e patrimônio cultural, sendo apropriada por lentes turísticas, identitárias ou históricas.
Portanto, ao adotar uma abordagem interdisciplinar — que dialoga com a teologia, a antropologia da religião e a sociologia da cultura — foi possível evidenciar que a Semana Santa permanece como um marcador relevante da experiência ocidental do sagrado, mesmo em sociedades marcadas pela secularização e pelo pluralismo. A sua permanência não reside apenas na repetição de práticas, mas na capacidade de se reinventar como símbolo, narrativa e performance.
Enfim, nesse sentido, compreender a Semana Santa em suas múltiplas expressões não é apenas um exercício de descrição cultural, mas um esforço interpretativo sobre como as sociedades contemporâneas continuam lidando com a finitude, o sofrimento e a esperança — temas centrais à condição humana. A Semana Santa, em sua diversidade de vivências, segue oferecendo um espelho onde diferentes grupos projetam suas perguntas últimas e constroem respostas simbólicas para o mistério da existência.
REFERÊNCIAS
ALÇADA, Isabel. A Semana Santa como património cultural e espiritual em Portugal. Revista de Estudos Culturais e Religiosos, Lisboa, v. 8, n. 2, 2012, p. 85–93.
ARRINGTON, French L. Teologia do Novo Testamento: Espírito Santo e dons espirituais. Rio de Janeiro: CPAD, 2006.
CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: EdUSP, 2008.
CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietudes. São Paulo: UNESP, 1990.
MARUJO, António. Vozes do silêncio: religiões e religiosidades no mundo contemporâneo. Lisboa: Temas e Debates, 2016.
O’MALLEY, John W. Os primeiros jesuítas. São Paulo: Loyola, 2007.
RATZINGER, Joseph. Introdução ao Espírito da Liturgia. São Paulo: Loyola, 2007.
STOTT, John. A cruz de Cristo. São Paulo: ABU Editora, 2007.
TEIXEIRA, Alfredo. Minorias religiosas e visibilidade pública: o caso do protestantismo evangélico em Portugal. Cadernos de Ciências Sociais da Religião, Lisboa, n. 9, 2015, p. 35–52.
TURNER, Victor. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Petrópolis: Vozes, 2005.
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. São Paulo: UNESP, 2011.
[1] Teólogo, Cientista da Religião e Coordenador da Faculdade Mais de Cristo. @pauloreligiologo@icloud.com
Comentários
Postar um comentário