Pular para o conteúdo principal

INVEJA NÃO SE EXORCIZA


 

Uma hermenêutica madura protege a fé contra os enganos da terceirização espiritual. Paulo Mazarem[1]

 

Resumo

Este artigo propõe uma análise bíblico-teológica da expressão “espírito de inveja” à luz de Gálatas 5.19-24, contestando interpretações que atribuem tal manifestação a entidades demoníacas. A proposta aqui é demonstrar, a partir da hermenêutica reformada e pentecostal clássica, que ciúmes e inveja são obras da carne e não possessões espirituais. Apoiado por fontes bíblicas e comentários de teólogos reformados e pentecostais, este trabalho visa esclarecer a distinção entre pecado humano e opressão espiritual, combatendo o erro teológico da terceirização do pecado por meio de uma espiritualização equivocada.

 

Introdução

Se a inveja fosse um espírito no sentido de uma entidade demoníaca, então toda a humanidade precisaria ser exorcizada — inclusive os salvos em Cristo. Ora, mais do que nunca, é urgente uma leitura bíblica mais responsável e espiritualmente madura das Sagradas Letras.

Em nossos dias, é comum ouvirmos frases como “isso é um espírito de inveja” ou “fulano foi atacado por um espírito de ciúmes”, como se estivéssemos lidando com possessão demoníaca. De fato, a Bíblia apresenta várias expressões que utilizam esse tipo de linguagem. Por exemplo, em Números 5.14, encontramos a expressão “espírito de ciúmes”, que se refere ao sentimento do marido dominado por suspeitas. Já em Tiago 4.5, lê-se: “O espírito que em nós habita tem ciúmes?”

 

Análise Exegética

Entretanto, uma análise mais acurada dos textos, tanto no hebraico quanto no grego, revela que essas expressões nem sempre apontam para seres espirituais. Em muitos casos, trata-se de figuras de linguagem para descrever disposições emocionais ou atitudes internas. Em Tiago 4.5, por exemplo, a melhor tradução seria: “O Espírito que em nós habita anseia zelosamente por nós”.


Vale a pena destacar que o termo “ciúmes” usado nesse texto é a tradução do grego phthonos, que também pode significar “zelo intenso”. Assim, afirmar que o Espírito Santo tem ciúmes, como uma paixão egoísta e possessiva, comprometeria seriamente sua santidade e perfeição. O Espírito de Deus é santo, justo e bom (Lucas 1.35), e não pode ser confundido com sentimentos carnais. Conforme explica John MacArthur, o texto deve ser interpretado como “zelo santo”, pois o Espírito deseja nossa total devoção. R.C. Sproul também reforça que “inveja é fruto da carne, não atributo divino”.

 

Não menos importante, o Comentário Bíblico Beacon (Assembleia de Deus) esclarece que esse “ciúmes” é o zelo do Espírito pela fidelidade espiritual dos crentes. Do mesmo modo, Warren Wiersbe afirma que Tiago usa linguagem figurada para expressar a devoção exclusiva que Deus espera de seus filhos. A Bíblia, portanto, não se contradiz. O que se entende como “espírito de ciúmes” é, na verdade, uma figura de linguagem que comunica zelo, não possessividade carnal.

 

Estrutura Teológica das Obras da Carne

No entanto, a Bíblia oferece uma distinção clara entre opressão espiritual e obras da carne. Em Gálatas 5.19-21, o apóstolo Paulo apresenta uma classificação teológica das manifestações do velho homem:

 

  • Pecados de ordem religiosa: idolatria, feitiçaria.
  • Pecados de ordem moral: adultério, impureza, prostituição.
  • Pecados de ordem social e emocional: ciúmes, inveja, iras, bebedices.

 

Ora, a inveja e o ciúmes estão listados claramente como obras da carne — e não como espíritos malignos. Isso é reafirmado em Gálatas 5.24, quando Paulo afirma que “os que são de Cristo crucificaram a carne com as suas paixões e desejos”. Se esses pecados fossem entidades demoníacas externas, bastaria expulsá-los, e o cristão jamais voltaria a cair neles. Porém, sabemos que a realidade é outra: essa luta é interna. Paulo descreve, em Gálatas 5.17, uma batalha entre a carne e o Espírito — duas naturezas em oposição constante. O pecado brota de dentro do coração humano, como ensina Jesus em Marcos 7.21-23.

 

Apoio Teológico

É importante dizer que essa compreensão não é exclusividade da teologia reformada. É também compartilhada por teólogos pentecostais sérios e criteriosos. Martinho Lutero, com sua doutrina da “corruptio totalis”, descreve a natureza humana como inclinada ao mal desde a queda. Já João Calvino afirma que o coração humano é uma “fábrica de ídolos”, indicando que a corrupção é interna. O bispo anglicano John Stott, com forte influência no meio evangélico carismático, ensina que a santificação é uma obra progressiva do Espírito, e não um ato mágico de expulsão.

 

Na teologia pentecostal, Gordon Fee — em sua obra Paul, the Spirit, and the People of God — afirma que o Espírito Santo transforma o crente de dentro para fora, promovendo o fruto do Espírito (Gálatas 5.22-23) e não apenas o livra de “espíritos maus”. Do mesmo modo, Antônio Gilberto, expoente da teologia da Assembleia de Deus, ensina: “Não se pode atribuir tudo aos demônios. Há pecados que são obras da carne e que exigem vigilância e disciplina espiritual.”

 

Não obstante, o renomado apologista pentecostal Esequias Soares afirma que “inveja, ira, dissensão e ciúmes fazem parte da natureza adâmica e não devem ser confundidos com possessão espiritual”.

 

Conclusão

Se inveja e ciúmes fossem apenas demônios, a igreja seria um lugar livre dessas falhas. Mas sabemos que, mesmo entre cristãos sinceros, esses males persistem. Isso nos mostra que não se trata de expulsar, mas de disciplinar, mortificar e renovar a mente (Romanos 12.2).

 

Assim, transferir a culpa para “espíritos” pode até ser confortável, mas não passa de uma fuga da responsabilidade espiritual. O verdadeiro crescimento cristão passa pela confissão, arrependimento e transformação diária pela ação do Espírito Santo — não por terceirização da culpa.

 

Sejamos como os bereanos de Atos 17.11 que examinavam tudo à luz das Escrituras. Não podemos dizer “amém” para tudo o que ouvimos — seja do púlpito, da internet ou dos gurus da fé. Por isso, leia-mos mais, estudemos mais, consultemos os originais, busquemos ferramentas seguras como dicionários bíblicos, comentários confiáveis e, se preciso, use os recursos da inteligência artificial com discernimento e responsabilidade.


Referências 

 

CALVINO, João. As Institutas da Religião Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2006.

 

FEE, Gordon D. Paul, the Spirit, and the People of God. Peabody: Hendrickson Publishers, 1996.

 

GILBERTO, Antônio. Manual de Teologia Sistemática. Rio de Janeiro: CPAD, 1996.

 

LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal, 1995.

 

MACARTHUR, John. Comentário Bíblico MacArthur: Novo Testamento. São Paulo: Mundo Cristão, 2013.

 

SOARES, Esequias. A Trindade: Um só Deus em três pessoas. Rio de Janeiro: CPAD, 2017.

 

SPROUL, R.C. Quem é o Espírito Santo? São José dos Campos: Fiel, 2012.

 

STOTT, John. O Discípulo Radical. Viçosa: Ultimato, 2011.

 

WIERSBE, Warren W. Comentário Bíblico Expositivo: Novo Testamento. Santo André: Geográfica, 2007.

 

BEACON HILL. Comentário Bíblico Beacon: Novo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2005.

 



[1] Teólogo, Cientista da Religião e Coordenador da Faculdade Mais de Cristo.   

E-mail:pauloreligiologo@icloud.com

 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

UMA BREVE HISTÓRIA DO CULTO AO FALO

Uma dose de conhecimento histórico, i.e., religiológico, (sim só um pouquinho) é suficiente para deixar nossos pudores embaraçados, uma vez que sexualidade sempre estivera imbricavelmente relacionado a religião parte constitutiva da humanidade.                              Uma historicização a respeito do “falo” ou de seus simulacros (objetos construídos para veneração)  nos períodos arcaicos da história humana, revelará que toda esta carga latente de erotização que (o Ocidente) se dá (eu) ao pênis hodiernamente, está equidistante da concepção que os antigos tinham a respeito da (o) genitália (órgão sexual) masculino.  Muitas culturas, incluindo o Egito, Pérsia, Síria, Grécia, Roma, Índia, Japão África até as civilizações Maia e Asteca viam no culto ao pênis uma tentativa de alcançar o favor da fertilidade e à procriação da vida.     Porém, ao que tudo indica o falocentrismo...

BOB ESPONJA, PATRICK E SIRIGUEIJO - REPRESENTAÇÕES SUBJETIVAS & COLETIVAS DO COTIDIANO

Esses tempos rolou um papo nas redes de que Bob esponja e Patrick eram gays, no entanto eles estão mais para anjos do que para hetero ou homossexuais, sim eles são seres assexuados. De acordo com Stephen Hillenburg (criador do desenho), Bob Esponja é ingênuo,  arquétipo do personagem que está(eve) sempre por aí, do indivíduo que vive e se comporta como uma criança. Já Patrick  não é ingênuo, mas burro.   Ambos formam uma dupla interessante, pois os dois juntos  pensam que são adultos e gênios.   De fato, Bob Esponja não (nunca)  percebe as trapalhadas que ambos cometes e Patrick se acha o melhor cara do mundo. Mas não esqueçamos o Mr. Sirigueijo. O senhor Sirigueijo, (chefe do Calça Quadrada na lanchonete)   tem uma história mais íntima, na verdade ele foi inspirado num chefe que Hillenburg conheceu quando trabalhou num restaurante... de frutos do mar.   O mesmo diz o seguinte: "Eu era da Costa Oeste americana...

GANZ ANDERE

“O Céu revela por seu próprio modo de ser, a transcendência, a força, a eternidade.   Ele existe de uma maneira absoluta, pois é elevado, infinito, eterno, poderoso”.    (Mircea Eliade 1907-1986 ) “ Ganz andere ” é uma expressão inspirada pelas ideias do teólogo protestante Rudolf Otto (1869-1937) e que aparece na introdução do clássico “O Sagrado e o profano: a essência das religiões” de autoria de Mircea Eliade. O sentido da expressão aponta para aquilo que é grandioso e “totalmente diferente”. Em relação ao “Ganz andere”, o homem tem o sentimento de sua profunda nulidade, o sentimento de não ser nada mais do que uma criatura, segundo os termos com que Abraão teria se dirigido ao Senhor – de não ser senão cinza e pó (Gen: 18:27). “Ganz andere” se identifica com aquilo que o homem religioso interpreta como a materialização extrema do sagrado.     Uma experiência possível de ser experimentada ao se observar durante a noite a imaginária ...