A disciplina eclesiástica é um sinal proléptico[1] e declarativo do julgamento divino escatológico e se, por vezes, o próprio Cristo julga a igreja de modo direto como ato precursor de seu julgamento futuro, faz sentido que, por vezes, a igreja seja instruída a aplicar a disciplina contra aqueles que causam divisões em seu meio.
Assim como o futuro de Deus ‘se introduz’ no presente por meio da Palavra e do sacramento (a inauguração, o sinal e o selo da nova criação e do banquete nupcial), a exclusão é um sinal escatológico do juízo final no presente. (Michael S. Horton, Eschatology and covenant: the divine drama [Louisville: Westminster John Knox, 2002], p. 272).
Em uma declaração espantosa que, caso seja verdadeira, deve levar as igrejas evangélicas contemporâneas a séria reflexão, R. Albert Mohler Jr. expressou sua opinião de que “o declínio da disciplina eclesiástica talvez seja a falha mais visível da igreja contemporânea. Não mais preocupada em manter a pureza da confissão ou do modo de vida, a igreja contemporânea considera-se uma associação voluntária de membros autônomos com mínima responsabilidade moral diante de Deus, e muito menos uns para com os outros”.
Em seguida, ele adverte: “sem o resgate da disciplina eclesiástica funcional |[...] a igreja continuará a deslizar para a dissolução moral e o relativismo”. Entre as razões apresentadas por Mohler para esse sério declínio, estão a transigência gradativa à cultura americana, o que inclui uma cultura de individualismo moral; a reivindicação de autonomia e privacidade pessoal; o hedonismo narcisista; e o relativismo absoluto.
O que é incômodo nessa declaração é que, caso seja verdadeira, significará que as igrejas evangélicas assumirão cada vez mais as características ímpias articuladas acima. E mais, para reverter a tendência a fim de evitar essa situação aterrorizante, o esforço necessário será tão monumental e controverso que exigirá das igrejas bastante tempo para ensinar e reinstituir a prática da disciplina eclesiástica, grande empenho para aplicar a prática resgatada à vida de membros da igreja que persistem no pecado, profundo arrependimento por parte desses membros, misericórdia compassiva por parte das igrejas para com eles e uma liderança forte para suportar as críticas das pessoas da igreja em razão da restauração dessa prática. As duas situações são assustadoras.
Embora atualmente a disciplina eclesiástica seja, em grande parte, negligenciada ou descartada com arrogância, tida como vestígio pré-histórico, ela era fervorosa e extensamente praticada no passado. Nos primeiros séculos do cristianismo, antes de catecúmenos[2] poderem ser batizados e se tornarem parte da igreja, a vida dos indivíduos que estavam se preparando para esse evento de ingresso era minuciosamente examinada.
DISCIPLINA COMO CONDIÇÃO PARA O BATISMO
Como Hipólito instruiu em Apostolic traditions [Tradições apostólicas], “Quando forem escolhidos aqueles que receberão o batismo, que sua vida seja examinada, se viveram de modo honrado enquanto catecúmenos, se honraram as viúvas, se visitaram os enfermos e se realizaram toda boa obra”. Até mesmo o meio pelo qual obtinham sustento era examinado, e era exigido de alguns catecúmenos que deixassem sua profissão antes de poderem ser batizados. De modo específico, pintores e escultores (de ídolos), atores, professores escolares (de conhecimento mundano), participantes de circos romanos (condutores de carros, atletas, espectadores), gladiadores e aqueles que eram associados a essa ocupação, sacerdotes idólatras, soldados e outros militares, cafetões, prostitutas, feiticeiros, concubinas e outros que se dedicavam a profissões semelhantes de má reputação tinham, primeiramente, de deixar essas ocupações para, então, poderem se tornar cristãos.
Fica claro que a disciplina na igreja primitiva era comum, amplamente difundida, específica e fortemente legislada.
DISCIPLINA NA REFORMA PROTESTANTE
Na época da Reforma, a disciplina eclesiástica desempenhou um papel importante nas igrejas protestantes. Martinho Lutero considerava o exercício da disciplina eclesiástica uma das sete marcas da verdadeira igreja. Valendo-se das instruções de Jesus a respeito da disciplina eclesiástica (Mt 18.15-20), declarou: “O povo de Deus, ou cristãos santos, é reconhecido pelo ofício das chaves exercido publicamente. Isto é, como Cristo decreta em Mateus, se um cristão pecar, deve ser repreendido. Se não mudar de conduta, deve ser ligado ao pecado e lançado fora. Se mudar de conduta, deve ser absolvido. Esse é o ofício das chaves”. Lutero exigiu o uso criterioso e apropriado da disciplina eclesiástica, dependendo da consciência sensível ou do coração obstinado do crente em pecado. Também acabou com o uso indevido das chaves pelo papa. Para Lutero, a igreja verdadeira aplica disciplina corretamente a fim de trazer de volta pecadores caídos.
Embora João Calvino não considerasse a aplicação da disciplina eclesiástica uma das marcas da verdadeira igreja, tratou dela de modo extenso. Como observamos no capítulo anterior, mostrou-se especialmente exasperado com os chamados cristãos que saíam da igreja. A disciplina eclesiástica era um elemento característico das igrejas na Genebra de Calvino, e pastores e presbíteros reuniam-se semanalmente às quintas-feiras para aplicá-la.
Seguindo o exemplo de Calvino, algumas declarações reformadas de fé — por exemplo, os Trinta e Nove Artigos da Igreja Anglicana - continuaram a relacionar duas marcas da igreja (a pregação da Palavra e a ministração dos sacramentos), enquanto outras — por exemplo, a Confissão de Fé Belga e a Confissão de Fé Escocesa - expandiram a lista a fim de incluir a disciplina eclesiástica como terceira marca.
Esse rico legado de disciplina eclesiástica continuou a ser honrado em muitas igrejas até o início do século 20. Greg Wills[3] observa que um sério declínio de sua prática teve início por volta dessa época, um declínio que persiste em igrejas evangélicas.11 Trato, agora, da natureza da disciplina eclesiástica e do resgate dessa prática. Essa análise está situada entre os capítulos que tratam do crescimento da igreja porque a disciplina eclesiástica protege a concretização da visão bíblica para a igreja.
OUTRAS QUESTÕES QUE EXIGEM DISCIPLINA ECLESIÁSTICA
Duas passagens fundamentais das Escrituras, Mateus 18.15-20 e 1 Coríntios 5.1-13 (com 2Co 2.5-11), apresentaram diversas informações a respeito da natureza, do processo e da aplicação da disciplina eclesiástica.
Além disso, ficaram evidentes duas áreas que exigem sua aplicação: o pecado pessoal cometido por um membro da igreja contra outro e faltas morais graves/públicas. As Escrituras tratam, ainda, de outras questões para as quais é exigida a disciplina eclesiástica e revelam princípios adicionais que fazem parte de sua aplicação.
OCIOSIDADE
Outra prática que requer disciplina eclesiástica é o modo de vida persistentemente ocioso. Paulo o descreve da seguinte forma: Irmãos, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, ordenamos a vocês que se afastem de todo irmão que anda em ociosidade e não conforme a tradição que vocês receberam de nós. |...] Pois ouvimos que alguns de vocês andam em ociosidade, sem se ocupar com trabalho, mas se intrometendo na vida alheia. A essas pessoas ordenamos e incentivamos no Senhor Jesus Cristo que trabalhem em silêncio e obtenham o próprio sustento (2Ts 3.6,11,12).
Os cristãos devem ser exemplo de grande empenho no trabalho. Essa diligência permite que obtenham seu próprio sustento, cuidem de si mesmos (e de sua famí-lia, se a tiverem; 1Tm 5.8) e não sejam um peso para outros. Alguns cristãos não vivem conforme esse padrão; antes, vivem de modo ocioso, desperdiçando a capacidade que têm de trabalhar por um salário.
Alguns se tornam bisbilhoteiros; têm tempo de sobra e usam-no indevidamente, intrometendo-se na vida de outros e fazendo fofoca (cf. 5.13). A igreja deve tomar providências para evitar membros desse tipo, o que implica não ajudá-los com dinheiro nem com outras doações. Além disso, a igreja deve admoestar esses membros a conseguir emprego, trabalhar em silêncio, deixar de se intrometer na vida alheia e se esforçar para obter seu sustento.
ESPÍRITO FACCIOSO
Paulo volta a atenção para outra questão que exige disciplina eclesiástica e junta falsos mestres com provocadores de divisão em mais uma advertência para a igreja: “Peço a vocês, irmãos, para que tomem cuidado com os que causam divisões e criam obstáculos contrários à doutrina que lhes foi ensinada; afastem-se deles. Pois essas pessoas não servem a Cristo, nosso Senhor, mas aos próprios apetites, e por meio de palavras suaves e lisonjas enganam o coração dos ingênuos” (Rm 16.17,18).
A igreja em Corinto tinha péssima reputação por causa desse pecado de partidarismo (1Co 1.10-13; 3.1-4), que se expressava especialmente na celebração da ceia do Senhor de forma indevida pela igreja (11.17-21).
De acordo com Paulo, algumas divisões são corretas e necessárias: no caso de indivíduos que se dizem cristãos, mas não são verdadeiros seguidores de Cristo, sua separação da igreja mostra quem é discípulo autêntico e quem não é. O apóstolo João, como Paulo, trata da divisão no caso de “anticristos”: “Eles saíram de nosso meio, mas não eram dos nossos, pois, se fossem dos nossos, teriam permanecido conosco. Mas eles saíram para que se tornasse evidente que nenhum deles é dos nossos” (1Jo 2.18,19).
Separar da igreja quem afirma ser cristão, mas não é, constitui um tipo correto e necessário de divisão, pois faz distinção entre discípulos verdadeiros e pessoas meramente religiosas.4o No entanto, não era essa a situação na igreja em Corinto que Paulo se propôs a corrigir. A igreja dividida estava realizando indevidamente a ceia do Senhor e, por isso, alguns de seus membros estavam enfermos e até haviam morrido prematuramente (1Co 11.30-32).
Era uma situação extremamente séria de disciplina de Deus contra o partidarismo na igreja. Se, como argumentei, a disciplina eclesiástica é um sinal proléptico e declarativo do julgamento divino escatológico e se, por vezes, o próprio Cristo julga a igreja de modo direto como ato precursor de seu julgamento futuro, faz sentido que, por vezes, a igreja seja instruída a aplicar a disciplina contra aqueles que causam divisão em seu meio. É exatamente isso que Paulo declara: “Quanto àquele que causa divisão, depois de adverti-lo uma e duas vezes, passa a evitá-lo, sabendo que ele está pervertido e em pecado; condenou a si mesmo” (Tt 3.10,11).
Aqueles que provocam divisão geram confusão na igreja, instigam controvérsias, alimentam tensões e estimulam conflitos. Devem ser identificados e evitados, advertidos para que parem de usar palavras e ações que incitam o partidarismo e ser removidos da igreja caso persistam em sua postura facciosa.
ENSINAMENTOS HERÉTICOS
Em razão da importância da sã doutrina para a própria existência da igreja e para o seu bem-estar, ensinamentos heréticos tornam-se outro pecado ao qual a disciplina eclesiástica deve ser aplicada. O repetido damnamus[4] pronunciado por Paulo sobre aqueles que pervertem o evangelho — “Mas ainda que nós ou um anjo do céu pregue a vocês um evangelho diferente daquele que pregamos, que esse seja amaldiçoado. Como temos dito anteriormente, agora repito: Se alguém está pregando a vocês um evangelho diferente daquele que já receberam, que esse seja amaldiçoado” (Gl 1.8,9)37. — é a base para que a igreja tome providências contra qualquer ser, humano ou angelical, que coloque um antievangelho no lugar do evangelho.
A reação da igreja nesses casos é apresentada em detalhes em diversos textos bíblicos. Em conformidade com a ordem de Paulo a Timóteo para que ele "ordene a certas pessoas que não ensinem qualquer doutrina diferente, nem se ocupem com mitos e genealogias intermináveis, que promovem especulações, e não o serviço de Deus, que é pela fé" (1Tm 1.3,4), os líderes da igreja têm a responsabilidade de se certificar de que falsos mestres sejam refutados e silenciados (cf. Tt 1.9-14).
Ao mesmo tempo, os presbíteros dividem essa responsabilidade com toda a igreja, descrita por Paulo como “coluna e fundamento da verdade” (1Tm 3.15) e que recebe de Judas a ordem para “lutar pela fé entregue aos santos de uma vez por todas” (Jd 3). Tanto a igreja quanto seus pastores devem ficar atentos a perigos de ensinamentos falsos em seu meio e devem agir de modo resoluto para erradicar essas heresias.
Além disso, quando a igreja está comprometida com a verdade bíblica e unida em sua adoção da ortodoxia, não permitirá que falsos ensinamentos conquistem nenhum ponto de apoio, como João insta em sua segunda carta: “Todo aquele que vai além e não permanece no ensino de Cristo, não tem Deus. Quem permanece no ensino tem tanto o Pai quanto o Filho. E, se alguém chegar a vocês e não trouxer esse ensino, não o recebam em casa, nem o cumprimentem, pois quem o cumprimenta participa de suas obras más” (2J0 9-11).
A pregação constante da Palavra de Deus (2Tm 4.1-5) e o ensino da sã doutrina (Tt 2.1) criam e consolidam igrejas e seguidores de Cristo maduros, que por sua vez são preparados para ser vigilantes nas tarefas de detectar, rejeitar e calar falsos mestres e sua doutrina corrompida.
Allison, Gregg R. Eclesiologia: uma teologia para peregrinos e estrangeiros / Gregg R. Allison; tradução de Susana Klassen. - São Paulo: Vida Nova
[1] Proléptico vem do grego prolépsis, que significa antecipação. Em teologia, algo proléptico é: Um sinal presente que antecipa um evento futuro. Ou seja, algo que já acontece agora como sinal daquilo que vai acontecer plenamente no fim.
[2] R. Albert Mohler Jr. (Richard Albert Mohler Jr.) é um dos teólogos mais influentes do evangelicalismo reformado nos Estados Unidos, especialmente dentro da tradição batista conservadora.
[3] Gregory A. Wills (ou Greg Wills) é um historiador da Igreja Batista e professor de teologia nos Estados Unidos, especializado em história do cristianismo, especialmente na tradição batista norte-americana.
[4] Vem do verbo latino damnare, que significa “condenar”, “pronunciar sentença contra”, “amaldiçoar” ou “declarar como inaceitável”.
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