IGREJA, DISCIPULADO, BATISMO EM ÁGUAS, DE CRIANÇAS E A CEIA DO SENHOR
By Paulo Mazarem[1]
A palavra “Igreja” aparece 73 vezes no Novo Testamento. O conceito é oriundo da palavra grega “ekklesia” (igreja), literalmente, refere-se à reunião de um povo, por convocação. A Igreja de Cristo possui uma vocação multifacetada e profundamente espiritual. Ela é, antes de tudo, doxológica, existindo para glorificar a Deus em tudo o que faz. É também logocêntrica, fundamentada em Jesus Cristo, o Verbo encarnado, e nas Escrituras como autoridade final.
Sua vida e missão dependem do Espírito Santo, por isso é pneumodinâmica, agindo no poder e na direção do Espírito. Como povo da aliança, ela é pactual, vivendo em comunhão com Deus e entre os irmãos. É igualmente confessional, unida pela fé em Cristo e pela verdade histórica do Evangelho. Além disso, a Igreja é essencialmente missional, enviada ao mundo para proclamar e viver o Reino de Deus. Por fim, é escatológica, situada na história, mas orientada pela esperança da consumação futura, vivendo entre o já e o ainda não do Reino.
A Igreja de Jesus Cristo é mais do que uma instituição; ela é um organismo vivo, chamado por Deus para refletir sua glória na terra. Sua vocação é ampla, profunda e espiritualmente significativa, pois nasce no coração da Trindade e se estende por toda a história, em direção ao cumprimento escatológico de todas as coisas. Essa vocação pode ser compreendida em sete dimensões interdependentes que revelam sua identidade e missão no mundo.
IGREJA DOXOLÓGICA
Em primeiro lugar, a Igreja é doxológica, isto é, voltada para a glória de Deus. Ela existe, em sua essência, para adorar. Todas as suas ações, da pregação à solidariedade, da ceia à missão, devem ter como alvo último a exaltação do Senhor. Como afirma o apóstolo Paulo: “Quer comais, quer bebais ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus” (1Co 10.31). A doxologia não é um momento do culto, mas o fôlego de toda a vida eclesial.
IGREJA LOGOCÊNTRICA
Essa Igreja glorificadora é também logocêntrica, centrada na Palavra, não apenas nas Escrituras como texto, mas em Jesus Cristo, o Verbo encarnado (Jo 1.1,14). A fé cristã é uma fé histórica e revelacional, ancorada na Palavra inspirada, autoritativa e suficiente. A Igreja é chamada a ouvir, anunciar e viver essa Palavra com fidelidade. Como nos lembra o apóstolo Paulo: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino” (2Tm 3.16). Sua centralidade na Palavra é o que a preserva da confusão doutrinária e do espírito de sua época.
IGREJA PNEUMODINÂMICA
Contudo, a Palavra sem o Espírito é letra morta. Por isso, a Igreja é também pneumodinâmica — ela vive, se move e serve pelo poder do Espírito Santo. É o Espírito que a congrega, santifica, distribui dons e concede poder para a missão (At 1.8; 1Co 12.4-7). A Igreja sem o Espírito é um corpo sem vida; com o Espírito, é o templo vivo de Deus, capacitado para toda boa obra.
IGREJA PACTUAL
Além disso, a Igreja é pactual, formada por aqueles que foram chamados a viver sob a nova aliança em Cristo. Ela é o povo do pacto, uma comunidade que vive em relacionamento com Deus e entre si, sustentada pela graça e comprometida com a fidelidade. A ceia do Senhor, por exemplo, é mais que um rito memorial, é a renovação contínua dessa aliança (Lc 22.20). Como vemos em Atos 2.42, a vida da Igreja é marcada pela comunhão, pela partilha e pelo compromisso mútuo, porque a aliança é tanto vertical quanto horizontal.
IGREJA CONFESSIONAL
Essa comunidade pactual é também confessional. Ela não é uma massa amorfa de crentes, mas um povo que se une em torno da fé professada: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt 16.16). Essa confissão é pessoal, mas também comunitária e histórica. Ao longo dos séculos, a Igreja reafirmou sua fé em credos, confissões e declarações doutrinárias que resguardam a sã doutrina e expressam a continuidade da fé dos apóstolos. Crer é confessar, e confessar é comprometer-se com a verdade que liberta (Jo 8.32).
IGREJA MISSIONAL
Mas a Igreja não vive para si mesma. Ela é missional, chamada a ser sal e luz no mundo (Mt 5.13-16). Sua identidade está ligada ao envio: “Assim como o Pai me enviou, também eu vos envio” (Jo 20.21). A missão não é apenas uma atividade da Igreja; é sua própria razão de existir neste mundo caído. A proclamação do evangelho, o cuidado dos marginalizados, o testemunho da reconciliação são expressões dessa vocação missional, sustentada pelo Espírito e fundamentada na Palavra.
IGREJA ESCATOLÓGICA
Por fim, a Igreja é espaço-temporal e escatológica. Ela está situada na história, vive no tempo e no espaço, mas não está confinada a eles. Sua cidadania é celestial (Fp 3.20) e sua esperança aponta para a vinda gloriosa do Senhor (Ap 22.20). Vivendo entre o “já” da inauguração do Reino e o “ainda não” de sua consumação, a Igreja é sinal e antecipação da nova criação. Ela não foge do mundo, mas atua nele como semente do que há de vir, resistindo ao presente século com a esperança viva de que Deus está fazendo novas todas as coisas.
Assim, a vocação da Igreja é multifacetada: ela adora, proclama, ensina, serve, confessa, espera e vive em aliança. É um corpo animado pelo Espírito, guiado pela Palavra e destinado à glória de Deus. Que ela nunca perca sua identidade, mas caminhe firmemente, com os olhos fitos em Cristo, “autor e consumador da fé” (Hb 12.2).
Em suma, trata-se do conjunto de povo de Deus reunido com o propósito de adorar ao todo criador, como cidadãos dos céus. É de se prever que todos saibam o que é uma igreja, tanto no sentido místico, quanto organizacional. É importante ainda lembrar que a igreja como organização lutou muito para adquirir o seu status que hoje possui, basta olharmos para o retrovisor da história e assistiremos desde sua fundação, as inúmeras perseguições que esta sofreu, sobretudo no espectro político desde os dias apostólicos. Hoje gozamos de prestígio pelas autoridades que inclusive frequentam nossas igrejas, reconhecendo o papel e a importância da igreja na (res)socialização de pessoas e na edificação da célula mater da sociedade, a família. Todavia, é preciso lembrar como já destacado que a igreja não é apenas uma organização, mas um organismo vivo.
Explicaremos aqui brevemente as distinções:
Dimensões da Igreja: Visível x Invisível
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ORGANIZAÇÃO
A igreja de Cristo como organização é possivelmente o primeiro contato dos cristãos com a sociedade. Não obstante, o modelo bíblico de organização da Igreja são os Dons e Ministérios que por meio dEla operam, dados por Deus (Ef. 4. 11) e pelo Espírito Santo (1 Cor 12. 1-11) como já destacados. É importante destacar que a igreja como organização aparece em vários trechos da Bíblia, sobretudo, nos capítulos dois e três do livro de Apocalipse onde encontramos um entendimento melhor sobre o tema. A mensagem de Cristo as sete Igrejas locais existentes no Oeste da Ásia Menor, com o propósito de instruir, advertir e edificar, dão conta de mostrar que o Senhor Jesus está a cuidar da sua igreja e quer ver nas Igrejas locais, cada uma (com suas particularidades e peculiaridades) o seu propósito sendo realizado.
ORGANISMO
A Igreja como organismo, é uma criação de Deus e todos os membros, embora tenham características distintas - cumprem o propósito de manter o corpo em condições mínimas de existência vital - Todos nasceram do Espírito Santo e este testifica que os nascidos de novo são filhos de Deus, co-herdeiros com Jesus Cristo, e portadores de uma dupla cidadania agora – pois não somos mais apenas desta terra, mas dos céus. E assim, com os pés na terra, somos sal e luz do mundo (e não um armazém de secos e molhados aglutinados e empilhados em caixas de lâmpadas e sacas de sal) comprometidos com os valores do reino de Deus. Além disso, mantemos os olhos fixos no céu, sem jamais perder a esperança de vida eterna, cientes de que essa vida não é em hipótese alguma plena ou a única modalidade de existência. (1 Cor 15. 19). Ora, quem é de Cristo, sabe que nenhuma geografia física, por mais paradisíaca que seja é permanente, por isso buscamos a que há de vir (Hb 13.14).
COMUNHÃO
Quais princípios divinos relacionados à mesa, à Igreja e à família podem estabilizar a comunhão, senão a Ceia? De fato, a comunhão é vital para a vida em família; por isso, é à mesa, no partir do pão (em memória de Cristo), que, no primeiro domingo de cada mês (em cada igreja local, salvo algum evento extraordinário), cristãos se reunem para cumprir o mandamento de Jesus, observando, obviamente, o imperativo do discipulado como critério essencial para o batismo e para a participação do corpo de Cristo.
É importante ressaltar que, segundo Mateus 28.19, o batismo deve ser precedido pelo discipulado: “Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os...” — o texto não ordena apenas batizar, mas fazer discípulos antes de batizar. Esse imperativo estabelece o discipulado como critério essencial para a integração no corpo de Cristo e, consequentemente, para a participação na Ceia do Senhor.
Ora, todas as recomendações bíblicas relacionadas à Ceia envolvem tanto cristãos quanto não cristãos (pagãos), e servem para endossar a tese de que a participação na Ceia, de forma incauta ou sem discernimento, pode acarretar prejuízos físicos e espirituais. “Por essa razão, há entre vós muitos fracos e doentes, e vários que já dormem” (1Co 11.30).
Essa compreensão está plenamente alinhada com o testemunho bíblico de Atos 2.42, onde se afirma que os primeiros cristãos “perseveravam na doutrina dos apóstolos, na comunhão, no partir do pão e nas orações”. Note-se que essa perseverança surge logo após os que creram serem batizados (At 2.41), formando, então, uma comunidade comprometida com a Palavra, o ensino apostólico e a vida sacramental. “Que ninguém coma nem beba da Ceia sem antes ter sido batizado em nome do Senhor”, afirma o Didaquê (cap. 9), um dos mais antigos documentos cristãos pós-apostólicos, também conhecido como “O Ensino dos Doze Apóstolos”. Este texto do final do primeiro século evidencia que a Igreja primitiva compreendia a Ceia do Senhor como um privilégio reservado àqueles que já haviam passado pelas águas do batismo — sinal visível de arrependimento, fé e submissão ao senhorio de Cristo.
Como nos lembra em sua obra Eclesiologia, Allison Gregg ao citar Hipólito[2] em Apostolic traditions[Tradições apostólicas], “Quando forem escolhidos aqueles que receberão o batismo, que sua vida seja examinada, se viveram de modo honrado enquanto catecúmenos, se honraram as viúvas, se visitaram os enfermos e se realizaram toda boa obra”. Até mesmo o meio pelo qual obtinham sustento era examinado, e era exigido de alguns catecúmenos que deixassem sua profissão antes de poderem ser batizados. De modo específico, pintores e escultores (de ídolos), atores, professores escolares (de conhecimento mundano), participantes de circos romanos (condutores de carros, atletas, espectadores), gladiadores e aqueles que eram associados a essa ocupação, sacerdotes idólatras, soldados e outros militares, cafetões, prostitutas, feiticeiros, concubinas e outros que se dedicavam a profissões semelhantes de má reputação tinham, primeiramente, de deixar essas ocupações para, então, poderem se tornar cristãos.
Portanto, é vital que cada membro do corpo de Cristo esteja plenamente cônscio da importância de observar as diretrizes bíblicas que sustentam e moldam a Cosmovisão Cristã. A vida em comunidade, o culto ao Senhor, o partir do pão, o discipulado e os sacramentos não são elementos opcionais ou simbólicos apenas são expressões concretas de uma fé viva, enraizada na revelação divina.
Ao reconhecermos que pertencemos a uma Igreja santa, chamada e enviada por Deus, compreendemos que cada princípio revelado nas Escrituras tem o propósito de alinhar nossa vida com a vontade do Senhor. Essa cosmovisão nos convida a enxergar todas as esferas da existência a família, a mesa, o batismo, a Ceia, o discipulado e a missão, sob a ótica do Reino de Deus.
Negligenciar essas diretrizes compromete não apenas a comunhão com Deus, mas também enfraquece os vínculos fraternos e obscurece o testemunho da Igreja no mundo. Por isso, somos chamados a viver de forma coerente com aquilo que cremos, a fim de que, em tudo, Cristo seja glorificado e a Igreja edificada.
Que, guiados pela Palavra, cheios do Espírito e comprometidos com o discipulado, possamos participar da mesa do Senhor com reverência, maturidade e entendimento — conscientes de que ali se renova a nossa aliança com Deus e com os irmãos, e se fortalece a identidade de um povo que vive segundo a verdade e a esperança do Evangelho.
BATISMO
O batismo em águas é uma ordenança instituída por Cristo para a sua Igreja. Essa prática foi ordenada diretamente por Jesus: “Portanto, ide, ensinai todas as nações, batizando-as em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo” (Mt 28.19). Por este motivo, o batismo é reconhecido como o testemunho público do novo nascimento, por meio do qual o crente se identifica espiritualmente com a morte, sepultamento e ressurreição de Cristo: “Sepultados com ele no batismo, nele também ressuscitastes pela fé no poder de Deus, que o ressuscitou dos mortos” (Cl 2.12).
A FÓRMULA BATISMAL
O Senhor Jesus, ao entregar à Igreja sua missão global, estabeleceu com clareza a fórmula pela qual o batismo deve ser realizado: “Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo” (Mt 28.19). Essa ordem não é apenas uma instrução litúrgica, mas uma profunda afirmação teológica da natureza trinitária de Deus e da inserção do novo crente na vida e na comunhão do Deus triúno. O uso do singular “em nome” revela a unidade essencial da Trindade, enquanto a menção das três Pessoas expressa a distinção relacional no ser divino.
O batismo trinitário é amplamente corroborado por outras passagens das Escrituras. Em 2 Coríntios 13.13 (ou 13.14, conforme a versão), Paulo encerra sua carta com uma bênção que invoca as três Pessoas divinas: “A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo sejam com todos vós.” Essa fórmula trinitária reflete a realidade espiritual do batismo: é o Pai quem chama, o Filho quem redime, e o Espírito quem regenera e sela o crente. Também em 1 Pedro 1.2 vemos a obra de salvação descrita em chave trinitária: “Eleitos segundo a presciência de Deus Pai, em santificação do Espírito, para obediência e aspersão do sangue de Jesus Cristo.” Esses textos reforçam que o batismo cristão não é um ritual genérico de purificação, mas uma entrada formal na aliança do Deus que é Trindade.
Embora algumas passagens do livro de Atos mencionem que os convertidos foram batizados “em nome de Jesus Cristo” (At 2.38; 10.48), essa fórmula não contradiz Mateus 28.19, mas expressa a autoridade de Cristo e o contraste com os batismos não cristãos da época (como os de João Batista). A Igreja primitiva entendeu que o batismo “em nome de Jesus” era compatível com o batismo trinitário, como revelado pela tradição e confirmado pela liturgia dos primeiros séculos.
Não obstante, a prática do batismo trinitário aparece já nos escritos do Didaquê (c. 90–110 d.C.), documento também conhecido como O Ensino dos Doze Apóstolos. No capítulo 7, lemos: “Batizai em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo, em água corrente.” Este é um dos primeiros testemunhos pós-apostólicos que confirma a fidelidade da Igreja primitiva ao mandamento de Cristo. Já Justino Mártir, por volta de 150 d.C., declara em sua Primeira Apologia que os que recebiam o batismo o faziam “em nome de Deus, Pai e Senhor do universo, e de nosso Salvador Jesus Cristo, e do Espírito Santo.” Tertuliano, no início do século III, em sua obra De Baptismo, também confirma essa prática e argumenta que qualquer batismo fora da fórmula trinitária é inválido.
Essa convicção foi definitivamente afirmada nos credos ecumênicos, especialmente no Credo Niceno-Constantinopolitano (381 d.C.), que declara a fé “em um só batismo para remissão dos pecados” após professar a fé no Pai, no Filho e no Espírito Santo. Ao longo da história da Igreja, essa fórmula foi considerada o selo de um batismo legítimo e ortodoxo. Negá-la é romper com a tradição apostólica e com a compreensão bíblica da salvação como obra conjunta das três Pessoas divinas.
Portanto, o batismo “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” é mais do que uma fórmula formal: é a expressão da fé da Igreja no Deus trino e o rito de entrada na nova vida em Cristo. Essa fórmula não apenas confere legitimidade ao ato batismal, mas também salvaguarda a doutrina da Trindade contra reducionismos e heresias. Assim, cremos, ensinamos e praticamos essa forma de batismo, em plena fidelidade à Palavra de Deus e ao testemunho contínuo da Igreja ao longo dos séculos.
O BATISMO NÃO REGENERA
A doutrina bíblica ensina claramente que o batismo em águas não possui poder regenerador. A salvação é um dom exclusivo da graça de Deus, recebido mediante a fé em Jesus Cristo (Ef 2.8–9). O perdão dos pecados está ligado ao arrependimento genuíno e à ação transformadora do Espírito Santo, não ao rito externo do batismo.
Embora Atos 2.38 declare: “Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos pecados...”, esse texto não deve ser interpretado como uma defesa da regeneração batismal. A própria pregação apostólica oferece uma leitura mais equilibrada. Em Atos 3.19, por exemplo, Pedro proclama: “Arrependei-vos, pois, e convertei-vos, para que sejam apagados os vossos pecados”, sem qualquer menção ao batismo como requisito direto para o perdão. A ênfase está sempre na fé e na conversão do coração.
Em Marcos 16.16, lê-se: “Quem crer e for batizado será salvo; mas quem não crer será condenado.” Aqui, o foco da condenação é a incredulidade, e não a ausência do batismo. A fé continua sendo o elemento determinante para a salvação. O batismo, embora ordenado por Cristo como sinal de obediência, não é a causa da salvação, mas sua consequência visível.
Essa verdade é reforçada por outros episódios bíblicos. João Batista ministrava o batismo apenas àqueles que demonstravam frutos dignos de arrependimento (Mt 3.8; Lc 3.8). Em Pentecostes, foram batizados os que de bom grado receberam a Palavra (At 2.41), evidenciando que o batismo seguia a fé, e não a precedia. O exemplo mais emblemático, porém, é o do malfeitor na cruz. Sem jamais ter sido batizado, ele foi salvo pelo próprio Cristo, que lhe disse: “Hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23.43).
Dessa forma, entende-se que o batismo não salva, não purifica pecados por si mesmo, nem gera nova vida espiritual. Ele é um ato público de fé e obediência, que confirma exteriormente a obra da graça já operada interiormente. A Igreja batiza os que já creram e foram regenerados, não para que sejam salvos, mas porque já o foram pela fé em Cristo. Esta é a compreensão fiel à mensagem do evangelho e à prática apostólica.
O BATISMO DE CRIANÇAS
A prática do batismo infantil não é aceita nem praticada por igrejas que seguem fielmente o padrão apostólico revelado nas Escrituras. Existem razões bíblicas, teológicas e espirituais claras para essa posição, e todas elas reforçam a convicção de que o batismo deve ser ministrado exclusivamente àqueles que creem e se arrependem conscientemente.
Em primeiro lugar, há ausência total de qualquer exemplo de batismo infantil nas Escrituras. Em todo o Novo Testamento, não se encontra sequer um caso em que uma criança tenha sido batizada. Os registros bíblicos indicam que a fé precede o batismo, como um ato de obediência consciente por parte do indivíduo que ouviu a Palavra, creu e se rendeu a Cristo. Além disso, o batismo exige maturidade espiritual mínima, algo que crianças pequenas não possuem. Elas ainda não têm plena consciência do pecado, o que as impossibilita de experimentar o arrependimento verdadeiro, condição indispensável para o batismo cristão. Como afirma Atos 2.38: “Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado...”. O arrependimento é pré-requisito, não uma consequência.
Outro equívoco comum é associar o batismo ao sinal da aliança, da mesma forma que a circuncisão no Antigo Testamento. No entanto, essa comparação não se sustenta à luz do evangelho. O apóstolo Paulo afirma em Gálatas 6.15 que “nem a circuncisão nem a incircuncisão têm valor algum, mas sim ser nova criatura”. O que autentica a fé cristã não é um rito externo, mas a transformação interior operada pela graça de Deus.
O Novo Testamento também destaca a necessidade de fé pessoal e consciente para a administração do batismo. Em Atos 8.36–38, quando o eunuco etíope pergunta: “Eis aqui água; que impede que eu seja batizado?”, Filipe responde: “É lícito, se crês de todo o coração.” Ao que o eunuco replica: “Creio que Jesus Cristo é o Filho de Deus.” Essa sequência, fé, confissão e batismo é a norma bíblica.
Atos 8.12 reforça esse padrão: “Quando, porém, creram em Filipe, que lhes pregava acerca do Reino de Deus e do nome de Jesus Cristo, eram batizados, tanto homens como mulheres.” O texto é claro ao mostrar que a fé precede o batismo, e que este era ministrado a adultos e pessoas conscientes, jamais a crianças ou infantes.
Dessa forma, conclui-se que o batismo infantil não possui base bíblica nem respaldo teológico. Trata-se de uma prática eclesiástica surgida séculos depois da era apostólica, mas sem fundamento nas Escrituras. O batismo é, essencialmente, um ato de obediência consciente, reservado àqueles que ouviram o evangelho, se arrependeram de seus pecados e creram de todo o coração no Senhor Jesus Cristo.
APRESENTAÇÃO DE CRIANÇAS
A frase frequentemente repetida em ambientes cristãos: “Alguns pais apresentam seus filhos a Deus, mas não apresentam Deus aos seus filhos”, revela uma tensão real e profunda entre o ato e a responsabilidade cotidiana da formação espiritual no lar. Ela nos convida a refletir sobre a diferença entre um gesto público e simbólico e um compromisso prático, contínuo e discipulador.
Apresentar um filho a Deus, como ocorre nas cerimônias de consagração infantil, é um ato digno, solene e bíblico visto, por exemplo, na apresentação de Jesus no templo (Lc 2.22). Contudo, esse gesto não substitui o chamado diário de instruir a criança nos caminhos do Senhor. O problema não está na apresentação, mas na falta de continuidade entre esse momento e a rotina espiritual da família. Apresentar Deus aos filhos, por outro lado, é uma tarefa constante e relacional. Significa que os pais assumem, diante de Deus e da comunidade de fé, o compromisso de ensinar, modelar, viver e transmitir a fé cristã no contexto do lar. Como ordena Deuteronômio 6.6–7:
Estas palavras que hoje te ordeno estarão no teu coração; tu as inculcarás a teus filhos e delas falarás sentado em tua casa, andando pelo caminho, ao deitar-te e ao levantar-te.
A Bíblia confia aos pais a missão de serem os primeiros mestres e pastores de seus filhos. Não basta depender da igreja uma vez por semana; é no ambiente familiar que a criança forma sua primeira imagem de Deus. Pais que não apresentam Deus aos filhos por meio do exemplo, da oração, da leitura bíblica e de conversas espirituais podem estar inadvertidamente terceirizando aquilo que jamais deveria ser delegado.
A consequência desse descuido é grave: filhos apresentados no púlpito de uma igreja podem crescer sem conhecer verdadeiramente aquele a quem foram consagrados. Torna-se, então, uma consagração sem discipulado, uma promessa sem cultivo, uma semente lançada sem rega nem cuidado.
Portanto, apresentar os filhos a Deus deve ser o início de um processo contínuo, no qual os pais e testemunhas, por palavras e atitudes, apresentam Deus aos filhos todos os dias, não apenas como uma doutrina, mas como uma presença viva e amorosa, pessoal e transformadora. Afinal, o maior legado espiritual que um pai pode deixar ao seu filho não é tê-lo levado ao púlpito de uma igreja, mas tê-lo conduzido ao coração de Deus.
CONCLUSÃO
Diante de tudo o que foi estudado, compreende-se que a Igreja, como corpo de Cristo, é chamada a refletir a glória de Deus em todas as dimensões de sua existência. Sua vocação é doxológica, pois vive para glorificar a Deus em adoração e serviço; logocêntrica, pois está firmada na Palavra revelada; pneumodinâmica, pois é conduzida e vivificada pelo Espírito Santo; pactual, pois vive em aliança com Deus e entre seus membros; confessional, pois professa a fé histórica e bíblica em Cristo; missional, pois é enviada ao mundo para anunciar o Evangelho; e escatológica, pois caminha com esperança na consumação do Reino.
À luz dessa identidade plural e profundamente espiritual, o batismo surge como uma expressão visível de uma realidade invisível: a união do crente com Cristo em sua morte e ressurreição. Assim, o batismo, no entanto, não é instrumento de salvação, mas sinal de que a salvação já ocorreu, é ato de obediência, testemunho público de fé e arrependimento, e deve sempre ser precedido pelo discipulado, como ensina Jesus em Mateus 28.19: “fazei discípulos... batizando-os...”.
Por essa razão, rejeita-se a prática do batismo infantil, uma vez que as Escrituras não apresentam qualquer exemplo dessa prática, e exigem como condição para o batismo a fé consciente e o arrependimento verdadeiro, elementos que não podem ser encontrados em crianças pequenas. Em vez disso, a apresentação de crianças, como vemos no exemplo de Jesus sendo levado ao templo (Lc 2.22), é uma prática bíblica e significativa, que simboliza a consagração da vida da criança a Deus e o compromisso dos pais e da comunidade em criá-la nos caminhos do Senhor.
Portanto, a Igreja deve manter fidelidade às Escrituras em sua prática batismal e formativa. Ela batiza os que creem de todo o coração, acompanha os recém-nascidos na fé com discipulado contínuo, e apresenta suas crianças ao Senhor, comprometendo-se a apresentar Deus aos filhos e não apenas os filhos a Deus. Assim, vive de modo coerente com sua vocação trinitária, formando discípulos que glorificam a Deus, permanecem na Palavra, seguem o Espírito, vivem em aliança, professam a fé, cumprem a missão e aguardam, com esperança, a vinda do Senhor.
REFERÊNCIAS
GREGG R. Allison, Eclesiologia: uma teologia para peregrinos e estrangeiros; tradução de Susana Klassen. São Paulo: Vida Nova, 2021
DIDAQUÊ. Os Doze Apóstolos: A Tradição dos Apóstolos. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2011. (Coleção Patrística; v. 1).
JUSTINO MÁRTIR. Apologia I. In: SCHMIDT, A. et al. Apologistas gregos. São Paulo: Paulus, 2000. (Coleção Patrística; v. 5).
MASSARIN, Paulo. Kids Dedication. Florianópolis: Mais de Cristo, 2020.
MASSARIN, Paulo. Novos Membros. Florianópolis: Mais de Cristo, 2021.
TERTULIANO. O Batismo. In: TERTULIANO. Tratados Morais. São Paulo: Paulus, 2002. (Coleção Patrística; v. 13).
[1] Teólogo, Cientista da Religião e Coordenador da FMC. Email: pauloreligiologo@icloud.com
[2] Hipólito de Roma (c. 170 – c. 235 d.C.) foi um dos mais importantes teólogos da Igreja primitiva e é frequentemente considerado o primeiro antipope da história da Igreja, ou seja, um bispo que se opôs ao papa legitimamente eleito, embora tenha morrido reconciliado com a Igreja.
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