Pular para o conteúdo principal

QUESTÕES EPISTEMOLÓGICAS NA CIÊNCIA DA RELIGIÃO









QUESTÕES EPISTEMOLÓGICAS NA CIÊNCIA DA RELIGIÃO
Entrevista concedida por Frank Usarski – Livre Docente e Doutor em Ciência da Religião – Professor do PEPG em Ciências da Religião PUC-SP

Gilmar Gonçalves da Costa¹
Claudio Santana Pimentel 
²
Prezado professor Dr. Frank Usarski, seguem seis perguntas selecionadas, para que o senhor possa apreciá-las e respondê-las. O objetivo é refletir sobre as questões epistemológicas na Ciência da Religião e a identidade dessa Disciplina.


1. O que o senhor nos diz sobre o desafio de se refletir a identidade e a autonomia epistemológica da Ciência da religião no Brasil?
R: Primeiro, é fato que existem vários Programas de Ciência da Religião no Brasil. O primeiro deles já tem trinta e dois anos ou mais. Então, é importante perceber que, se esses programas existem institucionalmente, eles vão consolidando sua identidade. Segundo, existe certa demanda internacional, pois a Ciência da Religião enquanto disciplina acadêmica data de mais de cem anos. Os programas europeus foram instalados ainda no século XIX. Com isso, há uma história de reflexão sobre sua identidade, também devido ao fato de que a Ciência da Religião não é a única disciplina que reflete sobre seu objeto. Assim, podemos dizer que sua maior concorrente é a Teologia, a qual, normalmente, não precisa "muito" refletir sobre a sua própria identidade, porque ela se justifica pela tradição imensa adquirida durante os seus vários séculos de existência e, parece-me, está isenta da necessidade de discutir sobre seus constituintes. Isso não vale para a Ciência da Religião, pois é mais nova, especificamente aqui no Brasil. Para tanto, é necessário que a Ciência da Religião reflita sobre sua própria identidade, tendo o objetivo de definir com maior precisão o que nós poderíamos oferecer de melhor para a sociedade, ou seja, esclarecer qual é a nossa relevância em termos sociopolíticos, a importância da nossa autonomia acadêmica para fora da própria academia. Portanto, refletir sobre a identidade disciplinar oferece esses dois lados: ser consistente a respeito dos nossos próprios princípios epistemológicos e esclarecer isso para outras disciplinas e para as instâncias não acadêmicas; dizer qual o nosso papel e a nossa contribuição na esfera universitária, sob uma lógica interdisciplinar, e oferecer nossa contribuição à sociedade, no âmbito extra-acadêmico.

2. Tendo em vista a área de conhecimento da Ciência da Religião, o que o senhor nos diz sobre os debates e interações entre a Ciência da Religião e as Ciências Sociais?
R: Essa é uma pergunta interessante porque, em nível internacional, na International Association for the History of Religions (IAHR), há uma discussão referente ao caráter predominante da Ciência da Religião. Existe uma "facção" que prioriza mais a questão histórica, considerando a Ciência da Religião, sobretudo, uma ciência histórica. Outros destacam o caráter sociológico da Ciência da Religião, isto é, vêem a Ciência da Religião como uma ciência estritamente sociológica. Eu entendo que essas duas dimensões caminham juntas, pois a Ciência da Religião precisa de um olhar histórico devido ao seu objeto que são as religiões, para compreender a maneira como elas se desenvolvem no decorrer da história. Mas também se torna relevante no sentido da aplicação da Ciência da Religião nas sociedades modernas quanto à questão dos conflitos, das configurações, das manifestações institucionais, das convenções. Essas questões alimentam-se por teorias elaboradas, sobretudo, pelas Ciências Sociais. Sob esse último aspecto, a Ciência da Religião encaixa-se na Sociologia, recebendo dela elementos teóricos para seu próprio trabalho. Também as questões empíricas, como, por exemplo, as estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) compõem o quadro de atividades representadas pela Ciência da Religião. Assim, quando você tem configurações sobre religiões atuais, não se deve trabalhar sem a interferência desses dois campos de conhecimento científico – História e Sociologia.

3. Qual seu ponto de vista a respeito da aproximação entre a pesquisa acadêmica da religião e a transposição didática e seus resultados no ensino religioso?

R: Eu acho que uma das tarefas principais da Ciência da Religião no sentido extra-acadêmico está no ensino religioso. Eu falo isso não no sentido de esperança, mas a partir da experiência concreta que tenho na Alemanha. A Alemanha fortaleceu muito a Ciência da Religião a partir do momento em que os Estados de sua Federação começaram a oferecer ensino religioso alternativo nas escolas públicas, ou seja, as escolas tiveram que oferecer um tipo de estudo religioso alternativo aos alunos e aos seus pais que saíram das igrejas. Nesse sentido, na Alemanha, a matéria referencial nas universidades tem sido a Ciência da Religião; esta passou a ter, também, a atribuição de formar professores para o ensino religioso alternativo. Eu, quando trabalhei na Universidade de Erfurt entre 1992 e 1997, antes de chegar ao Brasil, preparei professores para dar aulas de ensino religioso em escolas públicas. Aqui no Brasil, a Ciência da Religião também desempenha um papel relevante e construtivo, no sentido de promover um diálogo entre as religiões. Nesta lógica, apresentar as especificidades das religiões é importante porque a Ciência da Religião deve ter uma abordagem não normativa, quer dizer, não deve aproximar-se das religiões mediante uma hierarquia, no sentido em que existiria uma religião melhor do que outra, ou que seja verdadeira; essas são abordagens que o cientista da religião não deve ter. Este profissional deve trabalhar as religiões como sistemas de sentido formalmente idênticos. Elas são vistas como sistemas plausíveis em si, e se exclui a pergunta pela verdade religiosa. O cientista da religião vai tentar entender como o próprio fiel e/ou representante de uma religião vê sua própria religião, como essa se configura e quais são os argumentos que ele (o fiel) apresenta ao defendê-la. Esses são aspectos importantes para uma escola enraizada em uma cultura cada vez mais multicultural, onde você tem, em sala de aula, muçulmanos, judeus, ateus, cristãos, membros de minorias religiosas, representantes de novos movimentos religiosos. Assim, nossa tarefa é mostrar, de forma clara, que cada religião possui lógicas implícitas que lhes são inerentes, e, portanto, existem limitações no sentido de um diálogo religioso que busque uma religião de tarja universal. Para mim, religiões são diferentes. Agora, respeitar essas diferenças, entender em que sentido aquela é diferente dessa, a configuração dos argumentos de uma e outra, tudo isso é importante para ação dos cientistas da religião presentes em uma escola que deve dar significação científica aos diálogos sobre etnicidades e religiões.


4. Comente a relação entre o atual panorama religioso brasileiro e o desenho metodológico dos Programas de Pós-Graduação em Ciência da Religião neste país, sobretudo da PUC-SP.
R: Muito boa esta pergunta. Eu acho que a riqueza do campo religioso vem refletindo nas nossas ofertas de pesquisa enquanto professores na PUC-SP, mas isso vale não apenas para esta universidade, uma vez que a grande força da Ciência da Religião no Brasil é o próprio campo religioso deste país. Isso tem uma desvantagem, para variar. As religiões que não desempenham um papel forte são quase negligenciadas; por exemplo: aqui no Brasil têm-se poucos cursos sobre o Islã; diferentemente dos Estados Unidos, França, Inglaterra e Alemanha onde o Islã faz parte da formação do cientista da religião. O Budismo, embora seja pelo menos bastante visível, é pouco contemplado, bem como outras religiões, tais como o Xintoísmo, o Taoísmo, o Animismo etc. Neste sentido, há certa lacuna referente aos estudos sobre religiões orientais tradicionais. No entanto, certamente há ênfase em pesquisa referente às religiões que brotam no território brasileiro, como por exemplo, o pentecostalismo. Aqui na PUC-SP, nós temos o professor Edin Abumanssur que trabalha com essa questão. Nesta perspectiva, destaca-se também a UMESP sobre os estudos aplicados ao pentecostalismo. A situação do campo religioso brasileiro, a partir das estatísticas, sob um olhar sociológico, é muito bem representada, bem como as religiões indígenas e afro-brasileiras (aqui, com o professor Ênio Brito). Então, em minha opinião, a Ciência da Religião é muito forte na reflexão sobre o campo religioso do Brasil contemporâneo, mas merece certo aperfeiçoamento, uma complementação, quanto aos estudos relacionados a religiões que aqui não aparecem tão claramente.

5. O que o senhor nos diz sobre a relação entre a Graduação em Ciência da Religião e a autonomia acadêmica da Ciência da Religião?
R:
 Essa é uma pergunta fundamental para o futuro da Ciência da Religião no Brasil. Em que situação nós nos encontramos agora, quanto às graduações e à autonomia da nossa disciplina? Nós não temos em nenhum dos oito programas de pós-gradução Stricto Sensu a graduação em Ciência da Religião, embora haja tentativas de compensar essa falta. Isso se reflete exatamente na sala de aula, isto é, nós temos alunos formados em vários campos que trazem certa riqueza para a sala de aula em termos de abordagens e pensamentos, mas há falta, muitas vezes até gritante, referente a determinadas questões que são refletidas de forma passageira durante o curso de Ciência da Religião. Isso porque não se tem tempo suficiente para refletir sobre o que é religião e como as religiões se classificam, como elas se organizam. Conhecimentos pormenorizados de determinadas religiões, questões teóricas comuns como secularização, globalização, podem ser trabalhadas na graduação de Ciência da Religião. Assim, com essa graduação, o aluno já apresentaria uma bagagem teórico-conceitual com a qual chegaria à Pós-Graduação. Isso infelizmente nós não temos. Neste sentido, perde-se muito tempo no curso de Pós-Graduação para preencher provisoriamente as lacunas mais gritantes decorrentes da falta da graduação em Ciência da Religião. Para tanto, com essa graduação haveria mais possibilidades para aperfeiçoamento do curso Stricto Sensu em termos acadêmicos, se tivéssemos a certeza de que cada aluno que entra na pós-graduação, ou pelo menos a maioria deles, já fosse formado na área. Poderíamos dar um segundo passo à frente. Portanto, eu entendo que a graduação em Ciência da Religião é de fundamental importância academicamente, mas ela também é relevante em termos da relação da Ciência da Religião com a sociedade brasileira mais ampla, porque as graduações formam profissionais – pessoas que vão sair da graduação e talvez nem vão fazer pós-graduação, mas que vão atuar profissionalmente em um campo político-social; diretamente nos labirintos da sociedade. Assim, se fosse possível instalar a graduação em Ciência da Religião, teríamos a possibilidade de apresentar nosso programa ao público brasileiro, com maior e melhor visibilidade.

6. Em um mundo marcado pela disputa do mercado de trabalho, quais são seus comentários sobre o campo de atuação profissional do Cientista da Religião?
R:
 Tirando algumas respostas que já dei anteriormente, uma das minhas principais preocupações particulares que trago da Alemanha, mas se encontra também em outros países e se reflete em várias universidades e círculos acadêmicos, refere-se à questão da Ciência da Religião aplicada. A pergunta é exatamente essa: qual a função profissional, política e social que poderíamos cumprir em uma sociedade maior, em termos de uma atuação extra-acadêmica? Eu vejo muitos campos em que o cientista da religião pode trabalhar, como por exemplo, as mídias. As mídias sempre têm polêmicas que estão intimamente relacionadas com a temática religião. Com isso, entendo que ser importante que as redações jornalísticas, ou qualquer mídia de peso, tenham ao menos um especialista (ou alguns especialistas) em determinados temas que têm a ver com religião. Assim, as informações seriam mais profundas e mais adequadas e não alimentariam tantos preconceitos, como no caso, por exemplo, do Islã, onde as informações são muito distorcidas ou muito reducionistas. Outro campo seriam as grandes empresas. Alguns meses atrás, eu li uma entrevista interessante na Folha de São Paulo em que três advogados relataram suas experiências profissionais na China e num certo momento comentaram que, se você não conhecer a lógica chinesa, muito alimentada culturalmente pelo Confucionismo, não possui qualquer chance de fazer negócio com os chineses. Ou no longo prazo você vai ter prejuízo diante de um concorrente que sabe muito bem como entender e tratar os chineses melhor a partir da sua formação cultural-religiosa. Portanto, entendo que nesta era de globalização e de ascensão dos Estados BRIC, onde a China e a Índia representam um papel importante no futuro, os países islâmicos vão entrar mais ainda no palco dos negócios e das negociações internacionais. O Brasil, por exemplo, possui laços financeiros e políticos com o Irã, sendo importante conhecer a lógica cultural desse país. E ainda, o Islã tem seu sistema econômico-bancário alimentado por razões que se encontram no Alcorão. Isso exige conhecimentos para importantes transações e articulações econômicas, mas também demanda preparo de uma pessoa que representa uma instituição de nível internacional que queira fazer negócio com este mundo. Isto é, sem a sensibilidade para essa constituição haveria um prejuízo enorme, decorrente de uma falta de "formação"; nisso a Ciência da Religião pode desempenhar um papel muito importante. Outra área seria o turismo. Há um campo vasto no âmbito do turismo religioso. A começar das viagens de estudos e/ou pesquisas, em que eu pessoalmente trabalhei muitos anos. Além de ser professor, nas férias, eu levava vários grupos científicos e não científicos da Alemanha, França e Inglaterra para a Tailândia, Butão, Índia, Paquistão e outros locais, oportunidade em que eu sempre explicava o que significa um templo Hindu, uma mesquita. Ou seja, há muitas possibilidades de atuação profissional para o cientista da religião. E o mais importante é o ensino religioso, do qual já falamos. Isso não apenas implica formar professores para o ensino religioso não-confessional, mas também participar na criação de livros e manuais didáticos. Eu, pessoalmente, trabalhei com três editoras, na minha época na Alemanha, na elaboração e edição de livros escolares, em que assumi capítulos sobre Hinduísmo, Budismo, Islamismo e Novos Movimentos Religiosos do ponto de vista da Ciência da Religião, fornecendo material para a sala de aula. Portanto, eu vejo que a Ciência da Religião é muito relevante em vários sentidos, mas às vezes faltam criatividade e articulação da nossa parte, tendo em vista que ficamos muito presos neste mundo acadêmico pequeno, pensando na formação de pesquisador. Devemos lembrar que serão muito poucos, uma minoria, os pesquisadores que sobreviverão no mercado do futuro. Em minha opinião, o grande futuro – também profissional – está fora da academia.

¹ Mestrando em Ciências da Religião (PUC-SP).
² Mestre em Ciências da Religião (PUC-SP).


REFERÊNCIAS




Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

UMA BREVE HISTÓRIA DO CULTO AO FALO

Uma dose de conhecimento histórico, i.e., religiológico, (sim só um pouquinho) é suficiente para deixar nossos pudores embaraçados, uma vez que sexualidade sempre estivera imbricavelmente relacionado a religião parte constitutiva da humanidade.                              Uma historicização a respeito do “falo” ou de seus simulacros (objetos construídos para veneração)  nos períodos arcaicos da história humana, revelará que toda esta carga latente de erotização que (o Ocidente) se dá (eu) ao pênis hodiernamente, está equidistante da concepção que os antigos tinham a respeito da (o) genitália (órgão sexual) masculino.  Muitas culturas, incluindo o Egito, Pérsia, Síria, Grécia, Roma, Índia, Japão África até as civilizações Maia e Asteca viam no culto ao pênis uma tentativa de alcançar o favor da fertilidade e à procriação da vida.     Porém, ao que tudo indica o falocentrismo  cúltico  veio da Índia, com a prática do Brahman de adorar o pênis do deus supremo, Shiva.  

RESENHA DO FILME TERRA VERMELHA

Paulo R. S. Mazarem O Filme “Terra Vermelha" de 2008, direção e Roteiro do chileno Marco Bechis , bem como os demais roteiristas Luiz Bolognesi, Lara Fremder foi produzido com a finalidade de dilucidar a realidade enfrentada pelos índios Guarani- Kaiowá e descrever a perda espacial de seu território no Mato Grosso do Sul, expropriado pelos Juruás (homens Brancos). A co-produção ítalo-brasileira Terra Vermelha , é uma obra com teor político, e torna-se quase que indispensável por assim dizer para quem deseja compreender a questão e realidade indígena de nosso país. Ele descreve como a nova geração de índios, isto é, os jovens reagem diante de um novo sistema que lhe é imposto, onde seu trabalho, cultura e religião não possuem valor algum, efeitos esses decorrentes das apropriações indébitas de terras que em outrora eram suas por nascimento, para não utilizar o termo “direito” que nesse caso, não era um saber do conhecimento

BOB ESPONJA, PATRICK E SIRIGUEIJO - REPRESENTAÇÕES SUBJETIVAS & COLETIVAS DO COTIDIANO

Esses tempos rolou um papo nas redes de que Bob esponja e Patrick eram gays, no entanto eles estão mais para anjos do que para hetero ou homossexuais, sim eles são seres assexuados. De acordo com Stephen Hillenburg (criador do desenho), Bob Esponja é ingênuo,  arquétipo do personagem que está(eve) sempre por aí, do indivíduo que vive e se comporta como uma criança. Já Patrick  não é ingênuo, mas burro.   Ambos formam uma dupla interessante, pois os dois juntos  pensam que são adultos e gênios.   De fato, Bob Esponja não (nunca)  percebe as trapalhadas que ambos cometes e Patrick se acha o melhor cara do mundo. Mas não esqueçamos o Mr. Sirigueijo. O senhor Sirigueijo, (chefe do Calça Quadrada na lanchonete)   tem uma história mais íntima, na verdade ele foi inspirado num chefe que Hillenburg conheceu quando trabalhou num restaurante... de frutos do mar.   O mesmo diz o seguinte: "Eu era da Costa Oeste americana, ele era da Costa Leste”. Ele tin