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DEUS E FREUD




Sigmund Freud nasceu em 1856 em Freiberg, Morávia. Mudando-se para Viena, onde estudou medicina, casando-se com Martha Bernays, com quem teve seis filhos. Todos sabem que Freud é o pai da psicanálise e que além de suas obras sobre psicologia, Freud se preocupava com a temática religiosa, chegando a escrever as seguintes obras: “Totem e Tabu”, “Moisés e o monoteísmo” e uma obra que minou a crença em Deus, chamada o “futuro de uma ilusão”, datada em 1927. 


É claro que para compreendermos a leitura e visão de Freud a respeito da religião é preciso ouvir as vozes que lhe antecederam. Por este motivo é interessante destacar que a figura hermenêutica da ilusão, como a da projeção, acompanham desde sempre a reflexão do homem acerca da religião. 

Os pré-socráticos na antiga ironia de Xenófanes sobre a figuração antropomórfica dos deuses (“Se os cavalos tivessem mãos, pintariam imagens dos deuses semelhantes a cavalos”) já ecoavam com tonalidades diversas e com resultados vários, também no rico e fecundo filão da pesquisa psicanalítica das vivências religiosas. Logo, a função iconoclasta da psicanálise oscila, aqui, periodicamente, entre uma polaridade reducionista e niilista e uma outra purificadora e, em alguns casos, também apologética (Aletti, 1998, 2000b). No que diz respeito a Freud[1], a tese principal, a que permanecerá sempre fiel até os três ensaios sobre Moisés e o monoteísmo (Freud, 1934-38/1975), se expressou na carta a W. Fliess, de l2/12/1897, no qual define os conteúdos da religião como “mitos endopsíquicos” e explica: “A imortalidade, a recompensa depois da morte, o além no seu conjunto: são todas representações de nosso interior psíquico. Ideias loucas? Psicomitologia? (apud, Freud, 1887-1904/1986)

Certamente, não se trata, para Freud, de delírio, nem necessariamente de erro. Mas seguramente de uma construção projetiva, como irá precisar em psicopatologia da vida cotidiana: “Creio, com efeito, que grande parte da concepção mitológica do mundo, que se estende difundindo-se até às religiões mais modernas, não seja outra coisa que psicologia projetada no mundo externo” (1901/1976). Tarefa da psicanálise é a de (re)transformar tal “construção de uma realidade suprassensível” em uma “psicologia do inconsciente”.

De fato, trata-se de uma grande propositiva, que abre novos horizontes para a relação entre psicologia e teologia: “Poderíamos nos aventurar a resolver desse modo os mitos do paraíso e do pecado original, de Deus, do bem e do mal, da imortalidade, e semelhantes, traduzindo a metafísica em metapsicologia (1901/1976). Completar-se- á, assim, o percurso que visa mostrar que “o homem criou Deus segundo a própria imagem”. O mesmo fez Ludwig Feuerbach (1804-1872) viu na religião a projeção dos sonhos ocultos do ser humano.        
Em outras palavras, a religião não revela quem é Deus, mas quem é o ser humano, segundo esta concepção.  

Destarte que retomando Freud, isso será, depois, precisado no conhecido e muito citado passagem de Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância (1910/1969): “A psicanálise nos ensinou a reconhecer a interconexão existente entre complexo paterno e fé em Deus, indicou-nos que o Deus pessoal outra coisa não é, psicologicamente, que um pai mais poderoso”.

Deste modo, trata-se segundo Freud  da projeção de experiências infantis e de proteção e de cuidado[2], Deus é o precipitado da nostalgia do pai, que todo homem leva consigo na vida adulta, procurando perpetuar uma visão da vida como se fosse um “jardim da infância”.

Portanto, para Freud Deus é uma neurose da infância que não foi abandonada, o resultado de um anseio por um tipo de proteção celestial. Assim, na obra mais tardia, explicitamente dedicada a essa argumentação, O futuro de uma ilusão, Freud define a ilusão como crença fundada no desejo: “Dizemos portanto que uma crença é ilusão quando em sua motivação prevalece a satisfação do desejo e prescindimos, por isso, de sua relação com a realidade, exatamente como a própria ilusão renuncia à sua convalidação”.

Na realidade, e para além das expressões verbais, a ilusão (e não só a religiosa) é vista por Freud como procedimento de engano, um auto-engano da psique que se recusa a medir-se com a realidade, a qual se apresenta ao intelecto do homem. O mesmo fizera Nietzsche e Marx que têm em comum o "método da suspeição" que em suas análises da cultura e da consciência apresentam uma história de falsa-consciência. 

OBJEÇÕES:

A suposição de que o desejo de satisfação está errado é tão infundado quanto dizer que o desejo por comida e água também o seja. Freud supõe que tudo o que a religião envolve é desejo de consolo. Ao passo que a vivência religiosa dos mártires e de muitos santos que morreram ao fio da espada, nas arenas trucidados pelos Leões e que andaram errantes pelos desertos sofrendo perseguições, decapitações, etc... mostram exatamente o contrário. Dizer que isso é desejo de consolação, além de ser infundado é absurdo.

É interessante analisarmos que um outro grande psicólogo Wiliam James, demonstrou que os santos são fortes, não fracos. Em seu clássico “Variedade de experiências religiosas” concluiu que quem está em contato com um mundo mais elevado geralmente tem maior  
motivação para mudar esse mundo. Antes, ela diz respeito à ideia de força: o fiel sai do culto fortalecido. Émile Durkheim (1858-1917), que não era um crente em Deus, mas filho, neto e bisneto de rabinos, viu na religião a ideia de força. Durkheim nas formas elementares da vida religiosa, ele afirmou: O fiel que se comunicou com seu deus não é apenas um homem que vê novas verdades que o descrente ignora; ele é um homem que pode mais. Ele sente em si mais força, seja para suportar as dificuldades da existência, seja para vencê-las. [...] O primeiro artigo de toda a fé é a crença na salvação pela fé.

Ora, segundo de Rubem Alves, o sagrado, conforme Durkheim, não está vinculado ao círculo do saber, mas do poder. Deste modo A religião pode promover a manutenção de relações sociais ou ainda de forças pulsionais.

Sabe que essa não é a concepção de alguns intelectuais que numa linha mais crítica, por exemplo, entendem a religião como alienação da consciência (Feuerbach), discurso que promove a legitimação de relações sociais desiguais (Marx), ou ainda como ilusão (Freud).

No entanto, esta é uma concepção que obedece uma via tendenciosa, isto é, ateísta, impregnada de imprintings secularizantes. Ao passo que na contramão desses discursos encontramos propositivas menos ácidas e mais compreensivas da religião.

Portanto, ao invés de analisarmos a religião como uma pseudo-consciência, deveríamos tentar compreendê-la como uma meta-consciência, que se eleva diante daquela mediada pelos sentidos, cuja operação subalterniza-se aquelas onde se encontra o hemisfério esquerdo de nosso cérebro, onde operam a razão e lógica.

Talvez os neurocientistas possam participara dessa conversa, ou os Neuroteologos, mas vou me deter em mencionar Friedrich Hölderlin cuja análise a meu ver está para além dessa leitura. No seu ensaio

Hölderlin considera a religião como sendo essencialmente mítico-poética, não estando fundada nem na sua função social (como querem os funcionalistas) nem em uma realidade numinosa além das aparências (como querem os essencialistas). A religião surge de um encontro ou de uma relação que se abre para ambos os lados, o de pensar o impensável e o de aceitar a finitude. 

No entanto, esse encontro é originário: não é decorrente, mas cria esta polaridade. Constituída por esse núcleo, a religião é o âmbito constituído por expressões e imagens nas quais e através das quais o outro emerge e é também ocultado. 

Esta concepção é importante por dois motivos: a) ela corresponde à nossa pretensão de permanecer a nível de superfície, na frágil textualidade das representações religiosas; e b) ela sugere a religião como a experiência que se situa no espaço entre o que pode ser definido e o infinito, o abismo do ser. Um pensador contemporâneo, embora sem apelar a Hölderlin, parece argumentar de maneira similar. Cito Cornelius Castoriadis:

A religião dá nome ao inominável, representação ao irrepresentável, lugar ao não localizável. Ela realiza e satisfaz, simultaneamente, a experiência do Abismo e a recusa a aceitá-lo, circunscrevendo-o — pretendendo circunscrevê-lo — , dotando-o de uma ou muitas figuras, designando os lugares que ele habita, os momentos que ele privilegia, as pessoas que o encarnam, as palavras e textos que o revelam. A religião é por excelência, a representação/ocultação do Caos.


Castoriadis argumenta que a religião habita o chiaroscuro entre a existência social e o abismo, constituindo-se “ em uma forma de compromisso que combina ao mesmo tempo a impossibilidade, para os seres humanos, de se confinarem ao aqui-agora de sua ‘existência real’ e sua impossibilidade, quase igual, de aceitar a experiência do Abismo”. Neste sentido a religião habita não a cena, mas a moldura, recusando-se a ser parte do quadro, exatamente o contrário do que pretende a ciência. 

Portanto, se a razão, a ciência e a psicanálise são o quadro, as religiões serão as molduras, que em permanente devir dão ao quadro diferentes formas e representações. Enfim, Freud e seus colegas de suspeição, bem como aqueles que absolutizaram sua ideias niilistas, existencialistas e ateias não se ativeram as múltiplas possibilidades (moldura) que sempre escapam da leitura univoca que se faça da(s) religião(ões).



Paulo Mazarem
Florianópolis
27 Jan. 17

REFERÊNCIAS:

ALETTI, Mário. A Figura da ilusão na literatura psicanálitica da religião. Psicologia USP, 2004, 15(3), 163-190. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/pusp/v15n3/24610.pdf > Acesso em: 27 Jan. 17

BOBSIN, Osneide. Fenomeno Religioso e suas linguagens: revisitando conceitos elementares. Protestantismo em Revista, São Leopoldo, RS, v. 26, Set-Dez. 2011. Disponível em: http://periodicos.est.edu.br/index.php/nepp/article/view/248/261 > Acesso em: 27 Jan. 17

DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: introdução e conclusão. In: Os pensadores: São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 222

GEISLER, Norman. Enciclopédia de Apologética. Respostas aos críticos da fé cristã; tradução Lailah de Noronha – São Paulo: Editora vida, 2002. p. 362, 363 

PIERO, Laurence Gane. Entendendo Nietzsche. Um guia ilustrado; tradução de Carlos Duarte, Anna Duarte. - São Paulo: Leya, 2014. p. 152-155 

WESTHELLE, Vítor. Outros Saberes. Teologia e Ciência na Modernidade. Estudos Teológicos, 35(3): 258-278, 1995.






[1] Illusion não é delusion, segundo a eficaz tradução da passagem de Die Zukunft einer Illusion proposta pela Standard Edition, que brinca seja com a assonância seja com a etimologia latina. 

[2] E, portanto, de uma relação simbólica, não de uma figura real e histórica. O falso entendimento, operado por certos seguidores apressados, denuncia a dificuldade de um uso do “pensamento psicanalítico” fora do seu contexto de conteúdo e de finalidade.




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