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OS CAMINHOS DA LUXÚRIA


Já no primeiro documento escrito em terras brasileiras, o europeu não escondeu o espanto e o maravilhamento. Em sua carta ao rei, o escrivão Pero Vaz de Caminha registrou aqueles “corpos formosos” e moças “tão bem feitas (...) que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições”, lhes faria vergonha “por não terem a sua como a dela”.
Mas um português daqueles tempos não poderia se limitar ao elogio da nudez. Pelo menos não numa carta ao rei. Por isso, Caminha reagiu à tentação das índias tão bem feitas condenando a “falta de civilização” daqueles povos, apesar da “inocência” em mostrar as suas “vergonhas”. “O melhor fruto” que havia na nova terra, ele concluía, era “salvar esta gente”. Estava anunciada uma das funções da colonização: a imposição da fé católica. Mas este intuito oficial esbarraria em hábitos bem mais libertários, à medida que os colonos portugueses passaram a se relacionar com as índias.
Os jesuítas não demoraram a desconstruir a impressão inicial de Caminha, segundo a qual os indígenas seriam “folhas em branco” – prontos a receber e a aceitar o que os portugueses quisessem imprimir neles. Um dos empecilhos ao trabalho de catequização eram os costumes poligâmicos daquelas populações, que muitas vezes incluíam casamentos entre chefes e as filhas de suas irmãs como suas principais esposas. Essas uniões simbolizavam a manutenção do poder de determinados clãs indígenas dentro das tribos, e eram tão importantes que os jesuítas pediram à Igreja Católica que permitisse a união entre tios e sobrinhas em alguns casos. Era uma forma de manter aqueles homens com apenas uma mulher (a mais importante), abrindo caminho para que aceitassem a monogamia – este sim, um princípio inegociável para os católicos.
Nos primeiros tempos, os próprios colonos utilizaram o casamento como meio de fortalecer as relações de poder, unindo-se às filhas dos homens mais respeitáveis das tribos. Exemplo desses pioneiros foi o lendário João Ramalho, um dos poucos portugueses que sobreviveram aos 30 primeiros anos de colonização. Ele havia deixado esposa em Portugal, mas não titubeou em casar-se com a filha do cacique Tibiriçá. Teve também outras mulheres e constituiu uma grande prole, segundo relatou o Padre Manuel da Nóbrega (1517-1570). Seguia os costumes indígenas, andando nu e mantendo relações sexuais com várias índias, o que era compreensível dentro da dinâmica da manutenção do poder das tribos. Outros colonos viviam comportamentos semelhantes. Embora ilícitas, as relações esporádicas eram alternativas atraentes para a população colonial em geral, principalmente entre casais mistos (escravos e livres), porque havia menos interferência dos senhores neste tipo de relacionamento e, portanto, mais liberdade para os cativos fugirem das rédeas do poder senhorial.
Pode-se imaginar a desaprovação da Igreja a esse estado de coisas. No século XVI, a Europa impunha-se uma vida regrada sob os poderes religioso e laico, na qual os desejos deveriam ser refreados pela manutenção de regras de civilidade. Em relação aos hábitos das populações da colônia, valia a máxima de São Tomás de Aquino: era preciso ordenar “paixões e coitos” a fim de manter um equilíbrio indispensável para a conservação da espécie humana.
Na vila de São Paulo, os jesuítas não deixaram de observar – e de se escandalizar – com as relações temporárias e poligâmicas. Além do esforço em batizar e catequizar os indígenas, eles se dedicavam a converter as uniões informais ao matrimônio católico, nem sempre com sucesso. Mesmo sob a vigilância da Igreja Católica e da Inquisição, e sujeitos a sofrerem punições por seu comportamento, João Ramalho e muitos outros continuaram a viver com as índias. Cumpriam o importante papel de povoar um território ainda incipiente em nome da Coroa.
Curioso é que muitos dos primeiros colonos eram degredados por força da Inquisição: haviam sido condenados e enviados à nova terra para purificar seus pecados. Pior do que o degredo para o Brasil, só mesmo a pena de morte. Era um programa de salvação das almas, mas com o risco de que os condenados, em vez de se redimirem, acabassem difundindo suas más práticas e desvios no Novo Mundo. Muitos degredados caíram novamente nas malhas da Inquisição, quando houve a Primeira Visitação do Santo Ofício ao Brasil, no final do século XVI (1591-1595). Entre eles, portugueses que se haviam amancebado com índias.
A violência da catequese jesuíta fazia parte da cartilha do colonialismo moderno. Os índios eram vistos como inferiores, demonizados, forçados a abandonar seus costumes. Seu mundo era desprezado, vigiado e punido pela contrarreforma europeia. “O pecado estava em todas as gentes e lugares”, em “ameríndios luxuriosos, colonos insaciáveis, (...) senhores desregrados”, escreve Ronaldo Vainfas em Trópicos do pecado (2010). Os pecados relativos à sexualidade estavam presentes entre os mais perseguidos nas confissões, com a Inquisição buscando relatos minuciosos sobre a realização do “ato carnal” em suas mais variadas formas. Estavam em jogo relações de poder, com a Igreja Católica demonstrando sua supremacia e sua influência junto aos poderes do Estado. Contenção, ameaça e castigo eram as bases dessa política – uma lógica bem distante do que viviam, na prática, colonos e escravos, portugueses e índios.
A legislação régia reforçava a necessidade de punição para os crimes sexuais, no sentido religioso do termo. O livro V das Ordenações Filipinas (1604), que incluía legislações de períodos anteriores, previa punições para os que cometessem “pecado de sodomia” (sexo anal), o “cristão que dormisse com infiel” (judeus, muçulmanos ou outros “não católicos”), aqueles, incluindo padres, que entrassem “em mosteiro” e tirassem “freira para dormir com ela”, e os que dormissem com suas parentas, com mulheres casadas, virgens, viúvas honestas, além dos bígamos, entre outros casos. As punições variavam: confisco de bens ou sua perda total, tortura até a morte, prisão, degredo ou queima, até os culpados serem “feitos por fogo em pó”. Mas tudo dependia da condição social dos envolvidos.
O sexo com escravas índias ou negras e com prostitutas era até permitido, ou tolerado, em função da falta de mulheres brancas nas terras recém-conquistadas. As poucas que chegaram até o final do século XVI também ficaram sujeitas à Inquisição, e as confissões sobre os seus “ajuntamentos torpes” indicam pedidos de perdão e misericórdia por terem sido, na maioria dos casos, “falsamente” enganadas por pessoas que, na verdade, lhes queriam mal. A Igreja utilizava as confissões também para conseguir delações. Em 1591, Paula de Siqueira, casada, confessou suas culpas ao visitador da Inquisição Heitor Furtado de Mendonça, afirmando que recebera “cartas de amores e requebros” de outra mulher casada, tendo com ela “ajuntamento carnal (...) como se propriamente [fossem] homem e mulher”. A mulher era Filipa de Souza, que lhe contara, após beber muito vinho, ter “usado o dito pecado com muitas outras moças (...) e também dentro de um mosteiro, onde ela estivera”. Mosteiros e padres eram elementos comuns nas confissões.
Os padres responsáveis pelas paróquias do Império português zelavam pela vigilância dos costumes, mas nem sempre conseguiam escapar dos pecados que deviam combater. Foi o caso do vigário Frutuoso Álvares, de Matoim, no Recôncavo Baiano, que cometera “tocamentos desonestos com algumas 40 pessoas pouco mais ou menos”, o que escandalizou o visitador Heitor Furtado de Mendonça (c. 1550- ?).
Fosse como fosse, na sociedade colonial, o sexo era uma válvula de escape em resposta àquelas relações opressoras, ora para manter o poder, ora para libertar-se dele.

Milena Fernandes Maranho é professora do Centro Universitário Nossa Senhora do Patrocínio, em Itu (SP), e pesquisadora-colaboradora do IFCH/ Unicamp.

Saiba mais - Bibliografia
DEL PRIORE, Mary. Histórias íntimas – Sexualidade e Erotismo na História do Brasil. São Paulo: Editora Planeta, 2011.
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sexualidade, Família e Religião na colonização do Brasil. Lisboa: Livros Horizonte, 2001.
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
VAINFAS, Ronaldo (org.). História e Sexualidade no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1986.

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