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O PEREGRINO E O CONVERTIDO


HERVIEU-LÉGER, Danièle. O peregrino e o convertido: a religião em movimento. Petrópolis: Vozes, 2008. 15-57p.

Paulo Roberto Souza Mazarem
Universidade de São José- SC, Brasil.




É indiscutivelmente salutar trazer para a pauta do presente momento quando o assunto é “modernidade e religião”, a prestigiada socióloga da religião Danièle Hervieu Leger, atualmente uma das teóricas que mais se destacam no assunto.

Em sua obra cujo titulo original é ‘‘La religion en mouvement: le pèlerin et le converti’’ a autora mostra-nos como a religião na modernidade ganhou traços de decomposição e recomposição, cuja mobilidade e itinerância, até então eram desconhecidas.

Logo, no inicio de sua obra a autora propõe uma «parábola moderna», descrevendo os pireneus, nos vales de Andorra num contraste com a igreja que em tempos passados era á normatizadora moral e referencial para a conduta de vida religiosa daqueles vilarejos.

A autora ainda sinaliza as mudanças comportamentais e antropizações geográficas ali ocorridas, demarcando e reapontando os locais das antigas construções eclesiásticas que hoje foram transformadas em pequenas lojas, que segundo ela não pagam nem impostos para ali estarem, absorvendo dessa maneira a espacialidade dos lugares sagrados por completo resignificando o contexto local por ela pesquisados.

Ela faz entender que se em outrora a troca do fixo, do imóvel, do estático era impossível, hoje segundo ela a substituição está consumada, pois a antiga devoção é realocada por uma devoção de crenças, capaz de suscitar práticas rituais, esforços ascéticos e até experiencias inéditas de êxtases a-religiosos.

Do culto a divindade ao culto ao corpo e a estética, etc. Com traços durkheimianos a autora percebe o quanto a modernidade foi sutil, porém não sem proclamar seu diagnóstico um tanto substitutivo, isto é, de uma modernidade a-religiosa, para uma modernidade cuja nuvem de crenças retro-alimentam as mesmas crenças só que essas desparadigmatizadas, pois se em outrora o paradigma era o sagrado, agora o paradigma é o humano,  daí o apontar dos dedos da autora e a constatação analítica percebida como há ausência de instrumentos epistemológicos que impossibilitaram e por que não dizer que impossibilitam uma avaliação precisa diante do sincretismo politico e das metástases religiosas ocasionadas pela modernidade, tais quais ocorridas, por exemplo, no Islã e na Igreja católica, registradas em sua obra com exímia precisão que reconfigurou um novo pensar e viver religioso. 

A autora também traça uma cronologia de interesse pelo estudo sociológico da religião exilada, especificamente a religião católica francesa considerando à sua inevitável corrosão em um ambiente definitivamente secularizado frente à redução da religião ao conjunto de determinações sociais da época que segundo a autora correspondia a uma metodologia marxista e durkheimiana, ela ainda observa que o resultado metodológico gratificável dessa pesquisa, influência ainda hoje pesquisas recentes a respeito da situação religiosa na França. Destarte, que no final dos anos 1960 e o começo dos anos de 1970 os pesquisadores prestaram uma atenção especial para investigar os fatos religiosos e ao mesmo tempo reavaliar e reformular o modelo da incompatibilidade e da exclusão mútua que governava até então a análise das relações entre religião e modernidade de maneira que à conclusão espasmódica vinha do assunto vinha carregada pelo senso «da religião perdida à onipresença da religiosidade», do peso de uma modernidade racionalmente desencantada, alheia à religião dada a sua ingressão através da efervescente irrupção dos novos movimentos sociais, do engajamento dos crentes ligados a uma mobilização política e cultural, bem como dispersão de crenças expressa pelo aumento de religiosidades e desregulação institucional a uma subjetiva experiência religiosa fundante de sentido que ontologicamente potencializa uma subjetivação, autonomia e emancipação de pertença institucional nos indivíduos.                                                                  

De acordo com a autora a modernidade altera essa nova paisagem religiosa de crenças, criando cenários distintos, isto é, das sociedades tradicionais, onde a religião se confunde com cultura e de outro lado às sociedades da « alta modernidade, cuja religiosidade é flutuante, fluidica e dispersa, o que em suma só dificulta a leitura desse percurso religioso dada as suas reconfigurações constantes, não respondendo antropologicamente por meio do modelo das religiões institucionalizadas esse emaranhado de fenômenos religiosos ubíquos que entrelaça relações sociais e práticas sociais concomitantemente, portanto o que se conclui é que as fronteiras da religião não podem, assim, ser fixadas como precisão em relação à vida sociopolítica.                                           

Mas, afinal de contas no que creem os modernos religiosos, a autora em uma abordagem  ‘‘des-substantivada’’ não favorece nenhuma embalagem religiosa ou aquilo que ela chama de conteúdo particular do crer, até por que o que está em jogo não é o conteúdo de crenças e sim a ‘‘memória coletiva’’ sempre invocada como fonte de autoridade na tradição. ‘‘Como nossos pais creram, nós também cremos’’.     De acordo com Hervieu Leger (2008, p. 26):



Tal fórmula, que pode se exprimir em diferentes versões, dá a chave do ponto de vista que se decide aqui tomar sobre os fatos religiosos. Se seguirmos este percurso, admitiremos que não é o fato de crer em Deus que torna o homem religioso. É perfeitamente possível ‘‘Crer em Deus’’ de maneira não religiosa, em nome da iluminação oriunda de uma experiência mística, da certeza nascida de uma contemplação estética ou da convicção surgida de um engajamento ético. A crença se designa como ‘‘religiosa’’ quando o crente coloca diante de si a lógica de desenvolvimento que hoje o leva a crer naquilo que crê.



Por essa razão para a autora é de total importância compreender que o que torna alguém membro dentro de uma comunidade é a memória do grupo, ela se torna imaterial por que na tradição ela agrega crentes do passado, do presente e do futuro, por isso para a autora ‘‘a religião é como um dispositivo ideológico, prático e simbólico pelo qual se constitui e se mantêm [...] e é controlado o sentimento individual e coletivo de pertença a uma linhagem particular de crentes’’ (2008,p. 27). 

O livro divide-se em seis capítulos, porém nossa atenção estará voltada apenas para o primeiro capitulo parte onde a autora procurar tratar a respeito da “religião despedaçada”. O primeiro capítulo está subdividido em sete porções. Na primeira parte do capitulo primeiro “o que é a modernidade” a autora retoma a teoria da secularização que gravitou por um bom tempo sobre a reflexão escatológica da religião nas sociedades ocidentais. E para isso destaca três elementos determinantes. A racionalidade, a autonomia do individuo e um tipo particular de organização social.

Na segunda parte fala-se de ‘‘laicização’’ das sociedades modernas e do processo de esboroamento da religião até se tornar ilegítima na vida de cada individuo. Porém nesse trajeto percorrido da religião na história do ocidente não se pode ignorar que as representações do mundo e seus princípios de ação, foram extraídos do campo religioso, o que leva inclusive a socióloga francesa citar o sociólogo alemão Max Weber e sua célebre obra A ética protestante e o espirito do capitalismo.

Na terceira parte a ênfase estará direcionada para o paradoxo religioso das sociedades seculares. A autora resume o assunto formulando quatro proposições. Na primeira proposição a arquitetura do discurso está voltada para a modernidade das sociedades europeias, atestando sua construção a partir dos escombros da própria religião bem como diagnosticando sua emancipação da religião a partir do Iluminismo. Na segunda proposição a continuidade e a ruptura da modernidade com o universo judaico e cristão do qual ela emergiu, já na terceira proposição a indução se dirige para o enfraquecimento que o conhecimento e o progresso que continuam apesar dos traumas das guerras e catástrofes econômicas do século XX e na quarta proposição autora finaliza dizendo que o paradoxo da modernidade está na aspiração utópica, se desdobra sempre que a racionalidade cientifica e técnica se decompõe permanentemente, ora é exatamente nas entrelinhas dos interstícios que a oposição entre as contradições do presente e o horizonte do cumprimento futuro cria, no coração da modernidade, um espaço de expectativas no qual se desenvolvem, [...]  novas formas de religiosidade ( 2008, p.40). Nesse processo de contraproducencia econômica, politica e social a autora deixa escapar que muito se falou de “retorno do religioso” ou de “revanche divina”. E para encerrar essa parte ainda acrescenta que a secularização não é a perda da religião no mundo moderno.
A secularização de acordo com Hervieu-Leger, (2008, p.41):



É conjunto dos processos de reconfiguração das crenças que se produzem em uma sociedade onde o motor é a não satisfação das expectativas que ela suscita, e onde a condição cotidiana é a incerteza ligada à busca interminável de meios de satisfazê-las.



Em seguida a autora procura mostrar o quanto dessa crença escapa do monopólio das grandes igrejas e instituições religiosas cuja tendência geral permeia à subjetividade e individualidade das crenças, a conclusão obvia dessa nova ordem religiosa acontece na separação daquilo que é crença dita e crença praticada, de maneira que o enfraquecimento das instituições reside exatamente nessa ruptura. Porém, é na autonomia desses indivíduos religiosos que se reconfigura um novo sistema de fé, totalmente inédito em relação ao paradigma da instituição tradicional.

O senso religioso revela que nos mais secularizados países da Europa predominam um “mix” de crenças, aquilo que muitos chamam de sincretismo, isto é, uma inserção credal identitária de uma religião especifica que se modela em uma outra estrutura religiosa remanejando um novo repertório de crenças não na instituição religiosa, mas no individuo religioso que se torna a partir desse momento território de trafego religioso. Dessa maneira a crença não desaparece, mas, se replica ganhado novas expressões e significados para o individuo, rompendo paulatinamente com aquele dogmatismo tradicional próprio das estruturas religiosas antigas e conservadoras. 

No tópico seguinte à autora procura mostrar como se dá essas distintas “aptidões para a bricolagem”, estratificando socialmente essas diferenças e sinalizando que tais recursos estão disponíveis para um determinado grupo de pessoas, ou melhor, ela chega a dizer que “a bricolagem se diferencia de acordo com as classes, os ambientes sociais, o sexo, as gerações”. (2008, p. 47) Já no penúltimo tópico do capitulo primeiro a autora nos mostra de que maneira acontece essa desregulação da religião tradicional, (que diariamente perde sua voz de comando diante da autonomia do sujeito) e o esboroamento da crença que se manifestaram no final do século XX. Porém isso não desaparecimento das identificações confessionais, afirmar isso seria uma erro até porque  são elas que mantem a capacidade de contribuir na formação de identidades sociais. E por fim a autora encerra o último tópico do primeiro capitulo falando desse ecumenismo de valores que busca com as demais culturas uma homogeneização metaforizada dos objetos da crença religiosa tradicional e que dilui ao mesmo tempo às referencias religiosas de caráter monoteísta por um ideal de caráter fraterno.        
     
No entanto não escapam do processo as ideologias modernistas de desenvolvimento trazidas pelas crises econômicas, desemprego e inclusive a implosão do bloco soviético que rompeu a estabilidade das referências simbólicas e políticas em relação ás quais as sociedades do oriente se construíram (2008, p.55).  Porém a autora relembra que tais acontecimentos valoram o individuo dando mais autonomia  subjetiva na vivência privada, desenvolvendo também no coletivo o sentimento de interdependência entre os membros da sociedade especificamente aquelas de referência pluralistas e é em tal recurso identitário que os indivíduos conseguem enfrentar ou tentam como diz autora esquivar-se dos efeitos da desestabilização psicológica e do aniquilamento dos vínculos sociais. 
   
Enfim, a obra inteira é uma macrovisão da religião moderna ou da moderna religiosidade que está, não só em movimento, mas em mutação, não há dúvidas que a análise de H. Leger é um manual para compreensão desse fenômeno religioso que se desdobra hodiernamente cada vez mais, no entanto é interessante ressaltar que sua pesquisa torna-se um tanto reducionista e etnocêntrica, por não solapar universos religiosos desconhecidos como é o caso do pentecostalismo, será que o conceito de secularidade alcança a mesma compreensão para estruturas religiosas mais periféricas ou elas são válidas para qualquer estrutura?                                        

É claro que essa observação é apenas uma provocação filosófica até por que a análise da socióloga francesa é metodologicamente indutiva, enriquecedora não só do contexto sociológico como antropológico, mas também histórico, tornando-se em suma uma obra indispensável para quem quer aprimorar seu conhecimento a respeito da modernidade que há tudo fragmenta inclusive a religião.


By Paulo Mazarem



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