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TRADIÇÃO ORAL E OS GRIOTS

História geral da África, I: Metodologia e pré-história da África / editado por Joseph KiZerbo. – 2. ed. rev. – Brasília : UNESCO, 2010. p.169- 212.


FICHAMENTO




Quando falamos de tradição em relação à história africana, referimo-nos à
tradição oral [...] p. 167

Essa herança ainda não se perdeu e reside na memória da última geração de grandes depositários, de quem se pode dizer são a memória viva da África.      p. 167

Para alguns estudiosos, o problema todo se resume em saber se é possível conceder à oralidade a mesma confiança que se concede à escrita [...]. p. 168

Antes de colocar seus pensamentos no papel, o escritor ou o estudioso mantém um diálogo secreto consigo mesmo. Antes de escrever um relato, o homem recorda os fatos tal como lhe foram narrados ou, no caso de experiência própria, tal como ele mesmo os narra. p. 168
Nada prova a priori que a escrita resulta em um relato da realidade mais fidedigno do que o testemunho oral transmitido de geração a geração. p. 168

E, pois, nas sociedades orais que não apenas a função da memória é mais desenvolvida, mas também a ligação entre o homem e a Palavra é mais forte. p. 168

Lá onde não existe a escrita, o homem está ligado à palavra que profere. Está comprometido por ela. Ele é a palavra, e a palavra encerra um testemunho daquilo que ele é. p. 168

A própria coesão da sociedade repousa no valor e no respeito pela palavra. p. 168
Inúmeros fatores – religiosas, mágicos ou sociais – concorrem, por conseguinte, para preservar a fidelidade da transmissão oral. p. 169
Se formulássemos a seguinte pergunta a um verdadeiro tradicionalista africano: “O que é tradição oral?”, por certo ele se sentiria muito embaraçado. Talvez respondesse simplesmente, após longo silêncio: “É o conhecimento total”.        p. 169

Contrariamente ao que alguns possam pensar, a tradição oral africana, com efeito, não se limita a histórias e lendas, ou mesmo a relatos mitológicos ou históricos, e os griots estão longe de ser seus únicos guardiães e transmissores qualificados. p. 169
A tradição oral é a grande escala da vida, e dela recupera e relaciona todos os aspectos. p. 169
Dentro da tradição oral, na verdade, o espiritual e o material não estão dissociados. p. 169
Ela é ao mesmo tempo religião, conhecimento, ciência natural, iniciação à arte, história, divertimento e recreação, uma vez que todo pormenor sempre nos permite remontar à Unidade primordial. p. 169

Fundada na iniciação e na experiência, a tradição oral conduz o homem à sua totalidade e, em virtude disso, pode -se dizer que contribuiu para criar um tipo de homem particular, para esculpir a alma africana. p. 169

A tradição bambara do Komo ensina que a Palavra, Kuma, é uma força fundamental que emana do próprio Ser Supremo, Maa Ngala, criador de todas as coisas. p. 170
Ela é o instrumento da criação: “Aquilo que Maa Ngala diz, é!”, proclama o chantre do deus Komo. p. 170

Síntese de tudo o que existe, receptáculo por excelência da Força suprema e confluência de todas as forças existentes, Maa, o Homem, recebeu de herança uma parte do poder criador divino, o dom da Mente e da Palavra. p. 171

Iniciado por seu criador, mais tarde Maa transmitiu a seus descendentes tudo o que havia aprendido, e esse foi o início da grande cadeia de transmissão oral iniciatória da qual a ordem do Komo (como as ordens do Nama, do Kore, etc.,no Mali) diz -se continuadora. p. 171
Tendo Maa Ngala criado seu interlocutor, Maa, falava com ele e, ao mesmo tempo, dotava-o da capacidade de responder. Teve início o diálogo entre Maa Ngala, criador de todas as coisas, e Maa, simbiose de todas as coisas. p. 171

A tradição africana, portanto, concebe a fala como um dom de Deus. Ela é ao mesmo tempo divina no sentido descendente e sagrada no sentido ascendente. p. 172

Maa Ngala, como se ensina, depositou em Maa as três potencialidades do poder, do querer e do saber. [...] p. 172

Vivificadas pela Palavra divina, essas forças começam a vibrar. p. 172

Numa primeira fase, tornam-se pensamento; numa segunda, som; e, numa terceira, fala. p. 172

A fala é, portanto, considerada como a materialização, ou a exteriorização, das vibrações das forças. p. 172

“Quando Maa Ngala fala, pode-se ver, ouvir, cheirar, saborear e tocar a sua fala”. p. 172
Trata-se de uma percepção total, de um conhecimento no qual o ser se envolve na totalidade. p. 172
É por isso que no universo tudo fala: tudo é fala que ganhou corpo e forma. p. 172

Em fulfulde, a palavra que designa “fala” (haala) deriva da raiz verbal hal, cuja ideia é “dar força” e, por extensão, “materializar”. p. 172

A tradição peul ensina que Gueno, o Ser Supremo, conferiu força a Kiikala, o primeiro homem, falando com ele. p. 172

“Foi a conversa com Deus que fez Kiikala forte”, dizem os Silatigui (ou mestres iniciados peul). p. 172

Se a fala é força, é porque ela cria uma ligação de vaivém (yaa -warta, em fulfulde) que gera movimento e ritmo, e, portanto, vida e ação. p. 172

Este movimento de vaivém é simbolizado pelos pés do tecelão que sobem e descem, como veremos adiante ao falarmos sobre os ofícios tradicionais. p. 172

(Com efeito, o simbolismo do ofício do tecelão baseia-se inteiramente na fala criativa em ação). p. 172

A fala pode criar a paz, assim como pode destruí-la. É como o fogo. Uma única palavra imprudente pode desencadear uma guerra, do mesmo modo que um graveto em chamas pode provocar um grande incêndio. p. 173

Diz o adágio malinês: “O que é que coloca uma coisa nas devidas condições (ou seja, a arranja, a dispõe favoravelmente)? A fala. O que é que estraga uma coisa? A fala. O que é que mantém uma coisa em seu estado? A fala”. p. 173

Por essa razão a fala, por excelência, é o grande agente ativo da magia africana. p. 173

Deve-se ter em mente que, de maneira geral, todas as tradições africanas postulam uma visão religiosa do mundo. p. 173

No interior dessa vasta unidade cósmica, tudo se liga, tudo é solidário, e o comportamento do homem em relação a si mesmo e em relação ao mundo que o cerca (mundo mineral, vegetal, animal e a sociedade humana) será objeto de uma regulamentação ritual muito precisa cuja forma pode variar segundo as etnias ou regiões. p. 173

Na Europa, a palavra “magia” é sempre tomada no mau sentido, enquanto que na África designa unicamente o controle das forças, em si uma coisa neutra que pode se tornar benéfica ou maléfica conforme a direção que se lhe dê. p. 173

[...]“Nem a magia nem o destino são maus em si. A utilização que deles fazemos os torna bons ou maus”. p.173

Assim como a fala divina de Maa Ngala  animou as forças cósmicas que dormiam, estáticas, em Maa, assim também a fala humana anima, coloca em movimento e suscita as forças que estão estáticas nas coisas. p. 173

Na tradição africana, a fala, que tira do sagrado o seu poder criador e operativo, encontra - se em relação direta com a conservação ou com a ruptura da harmonia no homem e no mundo que o cerca. p. 174

Por esse motivo a maior parte das sociedades orais tradicionais considera a mentira uma verdadeira lepra moral. p.174

Na África tradicional, aquele que falta à palavra mata sua pessoa civil, religiosa e oculta. p. 174

 Ele se separa de si mesmo e da sociedade. Seria preferível que morresse, tanto para si próprio como para os seus. p. 174

“Aquele que corrompe sua palavra, corrompe a si próprio”, diz o adágio. p.174
Quando alguém pensa uma coisa e diz outra, separa-se de si mesmo. Rompe a unidade sagrada, reflexo da unidade cósmica, criando desarmonia dentro e ao redor de si. p. 174
Agora podemos compreender melhor em que contexto mágico-religioso e social se situa o respeito pela palavra nas sociedades de tradição oral, especialmente quando se trata de transmitir as palavras herdadas de ancestrais ou de pessoas idosas. p. 174

Para eles, a mentira não é simplesmente um defeito moral, mas uma interdição ritual cuja violação lhes impossibilitaria o preenchimento de sua função. p. 175

De modo geral, a tradição africana abomina a mentira. Diz-se: “Cuida–te para não te separares de ti mesmo. É melhor que o mundo fique separado de ti do que tu separado de ti mesmo”. p. 175

Mais do que todos os outros, os Doma sujeitam-se a esta obrigação, pois, enquanto Mestres iniciados são os grandes detentores da Palavra, principal agente ativo da vida humana e dos espíritos. p. 177

Se o tradicionalista-doma é detentor da Palavra, os demais homens são os depositários do palavrório… p.177

[...] um Mestre da faca dogon, do país de Pignari (departamento de Bandiagara) [...], certa vez, foi forçado a mentir a fim de salvar a vida de uma mulher procurada que ele havia escondido em sua casa. Após o incidente, renunciou espontaneamente ao cargo, supondo que já não mais preenchia as condições rituais para assumi -lo lidimamente. p. 178

Independentemente da interdição da mentira, ele pratica a disciplina da palavra e não a utiliza imprudentemente. Pois se a fala, como vimos, é considerada uma exteriorização das vibrações de forças interiores, inversamente, a força interior nasce da interiorização da fala. p. 178

Falar pouco é sinal de boa educação e de nobreza. p. 178

Não se deve confundir os tradicionalistas -doma, que sabem ensinar enquanto divertem e se colocam ao alcance da audiência, com os trovadores, contadores de história e animadores públicos, que em geral pertencem à casta dos Dieli (griots) ou dos Woloso (“cativos de casa”). p. 178

O griot”, como se diz, “pode ter duas línguas”. p. 178

Se o contador de histórias cometesse um erro ou esquecesse algo, sua testemunha o interromperia: “Homem! Presta atenção quando abres a boca!” Ao que ele responderia: “Desculpe, foi minha língua fogosa que me traiu”. p. 181

Um tradicionalista-doma que não é ferreiro de nascença, mas que conhece. p. 181

Em todos os ramos do conhecimento tradicional, a cadeia de transmissão se reveste de uma importância primordial. Não existindo transmissão regular, não existe “magia”, mas somente conversa ou histórias. p. 181

Além do valor moral próprio dos tradicionalistas-doma e de sua adesão a uma “cadeia de transmissão”, uma garantia suplementar de autenticidade é fornecida pelo controle permanente de seus pares ou dos anciãos que os rodeiam, que velam zelosamente pela autenticidade daquilo que transmitem e que os corrigem no menor erro, como vimos no caso de Danfo Sine. p. 181
  
O grau de evolução do adepto do Komo não é medido pela quantidade de palavras aprendidas, mas pela conformidade de sua vida a essas palavras. p. 182

Se um homem sabe apenas dez ou quinze palavras do Komo, e, as vive, então ele se torna um valoroso adepto do Komo dentro da associação. p. 182

A educação tradicional, sobretudo quando diz respeito aos conhecimentos relativos a uma iniciação, liga-se à experiência e se integra à vida. p. 182

Além do ensino esotérico ministrado nas grandes escolas de iniciação – por exemplo, o Komo ou as demais já mencionadas –, a educação tradicional começa, em verdade, no seio de cada família, onde o pai, a mãe ou as pessoas mais idosas são ao mesmo tempo mestres e educadores e constituem a primeira célula dos tradicionalistas. p. 183

São eles que ministram as primeiras lições da vida, não somente através da experiência, mas também por meio de histórias, fábulas, lendas, máximas, adágios, etc. Os provérbios são as missivas legadas à posteridade pelos ancestrais. Existe uma infinidade deles. p.183
[...] o ensinamento não é sistemático, mas ligado às circunstâncias da vida. Este modo de proceder pode parecer caótico, mas, em verdade, é prático e muito vivo. A lição dada na ocasião de certo acontecimento ou experiência fica profundamente gravada na memória da criança. p. 183

Na África, tudo é “História”. A grande História da vida compreende a História das Terras e das Águas (geografia), a História dos vegetais (botânica e farmacopeia), a História dos “Filhos do seio da Terra” (mineralogia, metais), a História dos astros (astronomia, astrologia), a História das águas, e assim por diante. p. 184

De todas as “Histórias”, a maior e mais significativa é a do próprio Homem, simbiose de todas as “Histórias”, uma vez que, segundo o mito, foi feito com uma parcela de tudo o que existiu antes dele. p. 184

Os ensinamentos referentes ao homem baseiam-se em mitos da cosmogonia, determinando seu lugar e papel no universo e revelando qual deve ser sua relação com O mundo dos vivos e dos mortos. p. 184

O aprendiz não deve fazer perguntas. Deve apenas observar com atenção e soprar. Esta é a fase “muda” do aprendizado. À medida que vai avançando na assimilação do conhecimento, o aprendiz sopra em ritmos cada vez mais complexos, cada um deles possuindo um significado. p. 188

O aprendiz não deve fazer perguntas. Deve apenas observar com atenção e soprar. Esta é a fase “muda” do aprendizado. À medida que vai avançando na assimilação do conhecimento, o aprendiz sopra em ritmos cada vez mais. complexos, cada um deles possuindo um significado. p. 189

Uma vez que a sociedade africana está fundamentalmente baseada no diálogo entre os indivíduos e na comunicação entre comunidades ou grupos étnicos, os griots são os agentes ativos e naturais nessas conversações. p. 195

Autorizados a ter “duas línguas na boca”, se necessário podem se desdizer sem que causem ressentimentos. Isso jamais seria possível para um nobre, a quem não se permite voltar atrás com a palavra ou mudar de decisão. p. 195

Um griot chega até mesmo a arcar com a responsabilidade de um erro que não cometeu a fim de remediar uma situação ou de salvar a reputação dos nobres. p. 195

É necessário acrescentar, entretanto, que se trata aqui apenas de características gerais e que nem todos os griots são necessariamente desavergonhados ou cínicos. p. 195

Pelo contrário, entre eles existem aqueles que são chamados de dieli -faama, ou seja, “griots -reis”. De maneira nenhuma estes são inferiores aos nobres no que se refere à coragem, moralidade, virtudes e sabedoria, e jamais abusam dos direitos que lhes foram concedidos por costume. p. 195

Em geral dotados de considerável inteligência, desempenhavam um papel de grande importância na sociedade tradicional do Bafur devido à sua influência sobre os nobres e os chefes. p. 195

Um nobre é capaz de se despojar de tudo o que traz consigo e possui dentro de casa para presentear a um griot que conseguiu lhe mover os sentimentos. Aonde quer que vão, estes griots genealogistas têm a sobrevivência largamente assegurada. p.196

É fácil ver como os griots genealogistas, especializados em histórias de famílias e geralmente dotados de memória prodigiosa, tornaram-se naturalmente, por assim dizer, os arquivistas da sociedade africana e, ocasionalmente, grandes historiadores. p.197

Mas é importante lembrarmos que eles não são os únicos a possuir tal conhecimento. p.197

Os griots historiadores, a rigor, podem ser chamados de “tradicionalistas”, mas com a ressalva de que se trata de um ramo puramente histórico da tradição, a qual possui muitos outros ramos. p.197
  
Quando um griot conta uma história, geralmente lhe perguntam: “É uma história de dieli ou uma história de doma?” Se for uma história de dieli, costuma –se dizer: “Isso é o que o dieli diz!”, e então se pode esperar alguns embelezamentos da verdade, com a intenção de destacar o papel desta ou daquela família – embelezamentos que não seriam feitos por um tradicionalista -doma, que se interessa, acima de tudo, pela transmissão fiel. p. 198

 Um mal-entendido que ainda tem sequela em alguns dicionários franceses deve ser esclarecido. Os franceses tomavam os dieli, a quem chamavam de “griots”, por feiticeiros (sorcier), o que não corresponde à realidade. p. 198

O mal-entendido provavelmente advém da ambivalência do termo francês “griot”, que pode designar o conjunto dos nyamakala (que incluem os dieli) e, mais frequentemente, apenas a casta dos Dieli. p. 199

Seja como for, a importância do dieli não se encontra nos poderes de bruxaria que ele possa ter, mas em sua arte de manejar a fala, que, aliás, também é uma forma de magia. p. 199

O grande genealogista é sempre um grande viajante. Enquanto um griot pode contentar-se em conhecera genealogia da família a que está ligado, o verdadeiro genealogista – seja griot ou não –, a fim de aumentar seus conhecimentos, deverá necessariamente viajar pelo país para se informar sobre as principais ramificações de um grupo étnico, e depois viajar para o exterior para traçar a história dos ramos que emigraram. p. 202
Dizer genealogista é dizer historiador, pois um bom genealogista conhece a história, as proezas e os gestos de todas as personagens que cita ou, pelo menos, das principais. p. 203
Essa ciência se encontra na própria base da história da África, pois o interesse pela história está ligado não à cronologia, mas à genealogia, no sentido de se poder estabelecer as linhas de desenvolvimento de uma família, clã ou etnia no tempo e no espaço. p. 203

Ainda hoje encontramos entre a população muitos conhecedores de genealogia e história que não pertencem nem à classe dos dieli nem à dos gaolo. p. 204

Temos aí uma importante fonte de informações para a história da África, pelo menos ainda por um certo tempo. Cada patriarca é um genealogista para seu próprio clã, e os dieli e gaolo vêm frequentemente lhes pedir informações com o propósito de complementar seus conhecimentos. p. 204

As peculiaridades da memória africana e as modalidades de sua transmissão oral não foram afetadas pela islamização, que atingiu grande parte dos países da savana ou do antigo Bafur. p. 204

[...] o Islã não adaptou a tradição africana a seu modo de pensar, mas, pelo contrário, adaptou-se à tradição africana quando – como normalmente ocorria – esta não violava seus princípios fundamentais. p. 204

A simbiose assim originada foi tão grande, que por vezes torna-se difícil distinguir o que pertence a uma ou a outra tradição. p. 204

Grandes escolas islâmicas puramente orais ensinavam a religião nas línguas vernáculas (exceto o Corão e os textos que fazem parte da oração canônica). p. 204

Das crianças que saíam das escolas corânicas a maioria era capaz de recitar de cor o Corão inteiro, em árabe e no salmo desejado, sem entender o sentido do texto, o que demonstra a capacidade da memória africana. p. 205

Independentemente de uma visão sagrada comum do universo e de uma mesma concepção do homem e da família, encontramos, nas duas tradições, a mesma preocupação em citar as fontes (isnad, em árabe) e nunca modificar as palavras do mestre, o mesmo respeito pela cadeia de transmissão iniciatória (silsila, ou “cadeia”, em árabe) e o mesmo sistema de caminhos iniciatórios (no Islã, as grandes congregações Sufi ou Tariga, plural turuq, cuja cadeia remonta ao próprio Profeta), que tornam possível aprofundar, através da experiência, aquilo que se conhece pela fé. p. 205

Entre todos os povos do mundo, constatou-se que os que não escreviam possuíam uma memória mais desenvolvida. p. 207

Uma das peculiaridades da memória africana é reconstituir o acontecimento ou a narrativa registrada em sua totalidade, tal como um filme que se desenrola do princípio ao fim, e fazê-lo no presente. Não se trata de recordar, mas de trazer ao presente um evento passado do qual todos participam, o narrador e a sua audiência. p. 208

 Aí reside toda a arte do contador de histórias. Ninguém é contador de histórias a menos que possa relatar um fato tal como aconteceu realmente, de modo que seus ouvintes, assim como ele próprio, tornem -se testemunhas vivas e ativas desse fato. p. 208

Ora, todo africano é, até certo ponto, um contador de histórias. p. 208

De maneira geral, a memória africana registra toda a cena: o cenário, os personagens, suas palavras, até mesmo os mínimos detalhes das roupas. p. 208

Por essa razão o tradicionalista não consegue “resumir” senão dificilmente.
Resumir uma cena equivale, para ele, a escamoteá-la. Ora, por tradição, ele não tem o direito de fazer isso. Todo detalhe possui sua importância para a verdade do quadro. Ou narra o acontecimento em sua integridade ou não o narra. Se lhe for solicitado resumir uma passagem ele responderá: “Se não tens tempo para ouvir-me, contarei um outro dia”. p. 209 

Do mesmo modo, o tradicionalista não tem receio de se repetir. Ninguém se cansa de ouvi-lo contar a mesma história, com as mesmas palavras, como talvez já tenha contado inúmeras vezes. A cada vez, o filme inteiro se desenrola novamente. E o evento está lá, restituído. O passado se torna presente. p. 209
 
Esta peculiaridade da memória africana tradicional ligada a um contexto de tradição oral é em si uma garantia de autenticidade. p. 209

As fichas imateriais do catálogo da tradição oral são máximas, provérbios, contos, lendas, mitos, etc., que constituem quer um esboço a ser desenvolvido, quer um ponto de partida para narrativas didáticas antigas ou improvisadas. p. 209

Para a África, a época atual é de complexidade e de dependência. Os diferentes mundos, as diferentes mentalidades e os diferentes períodos sobrepõem-se, interferindo uns nos outros, às vezes se influenciando mutuamente, nem sempre se compreendendo. p. 210

Na África o século XX encontra-se lado a lado com a Idade Média, o Ocidente com o Oriente, o cartesianismo, modo particular de “pensar” o mundo, com o “animismo”, modo particular de vivê-lo e experimentá-lo na totalidade do ser. p. 210

O resultado é que a população, até então governada segundo costumes sagrados que, herdados de ancestrais, asseguravam a coesão social, não compreende por que está sendo julgada e condenada em nome de um “costume” que não é o seu, que não conhece e que não corresponde às realidades profundas do país. p. 210

Para a nova “inteligentsia” africana, formada em disciplinas universitárias europeias, a Tradição muitas vezes deixou de viver. São “histórias de velhos”! p. 210

No entanto, é preciso dizer que, de um tempo para cá, uma importante parcela da juventude culta vem sentindo cada vez mais a necessidade de se voltar às tradições ancestrais e de resgatar seus valores fundamentais, a fim de reencontrar suas próprias raízes e o segredo de sua identidade profunda. p. 210

Por contraste, no interior da “África de base”, que em geral fica longe das grandes cidades – ilhotas do Ocidente –, a tradição continuou viva e, [...] grande número de seus representantes ou depositários ainda pode ser encontrado. p. 211

O grande problema da África tradicional é, em verdade, o da ruptura da transmissão. p. 211

Nas antigas colônias francesas, a primeira grande ruptura veio com a guerra de 1914, quando a maioria dos jovens se alistou para ir combater na França, de onde muitos nunca retornaram. Estes jovens deixaram o país na idade em que deveriam estar passando pelas grandes iniciações e aprofundando seus conhecimentos sob a direção dos mais velhos. p. 211

O fato de que era obrigatório para homens importantes enviarem seus filhos a “escolas de brancos”, de modo a separá-los da tradição, favoreceu igualmente esse processo. p. 211

As escolas, seculares ou religiosas, constituíram os instrumentos essenciais desta ceifada. p. 211
Estamos hoje, portanto, em tudo o que concerne à tradição oral, diante da última geração dos grandes depositários. p. 211

Justamente por esse motivo o trabalho de coleta deve ser intensificado durante os próximos 10 ou 15 anos, após os quais os últimos grandes monumentos vivos da cultura africana terão desaparecido e, junto com eles, os tesouros insubstituíveis de uma educação peculiar, ao mesmo tempo material, psicológica e espiritual, fundamentada no sentimento de unidade da vida e cujas fontes se perdem na noite dos tempos. p. 211

Para que o trabalho de coleta seja bem-sucedido, o pesquisador deverá se armar de muita paciência, lembrando que deve ter “o coração de uma pomba, a pele de um crocodilo e o estômago de uma avestruz”. p. 211

“O coração de uma pomba” para nunca se zangar nem se inflamar, mesmo se lhe disserem coisas desagradáveis. Se alguém se recusa a responder sua pergunta, inútil insistir; vale mais instalar-se em outro ramo. p. 211

Uma disputa aqui terá repercussões em outra parte, enquanto uma saída discreta fará com que seja lembrado e, muitas vezes, chamado de volta. “A pele de um crocodilo”, para conseguir se deitar em qualquer lugar, sobre qualquer coisa, sem fazer cerimônias. p. 212
Por último, “o estômago de uma avestruz”, para conseguir comer de tudo sem adoecer ou enjoar-se. p. 212

A condição mais importante de todas, porém, é saber renunciar ao hábito de julgar tudo segundo critérios pessoais. Para descobrir um novo mundo, é preciso saber esquecer seu próprio mundo, do contrário o pesquisador estará simplesmente transportando seu mundo consigo ao invés de manter -se “à escuta”. p. 212

Através da boca de Tierno Bokar, o sábio de Bandiagara, a África dos velhos iniciados avisa o jovem pesquisador: “Se queres saber quem sou,                                                        

Se queres que te ensine o que sei, Deixa um pouco de ser o que tu és e esquece o que sabes”. p. 212
















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