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CONSUMIDORES RELIGIOSOS OU DISCÍPULOS DE CRISTO?


O grande trabalho dos teólogos protestantes de Karl Barth, Paul Tillich, Emil Brunner e C. S. Lewis, foram o de basicamente dissociar o sentido empreendido pelos Outsiders que viam uma combinação entre religião e cristianismo, legados pelo concepção católico-histórica de que  religião (religare), é, ligar-se novamente com o divino, transmitindo a ideia de que por um momento houve (des)conexão e (des)ligamento. A questão é será mesmo que houve? 

 

Ora, sabe-se que a modernidade além de anunciar a morte simbólica de Deus, por meio da emancipação antropocêntrica, assistiu aquilo que alguns sociólogos têm chamado de revanche de Deus.  Os neurocientistas questionam-se, a partir de uma perspectiva interdisciplinar chamada de neuroteologia, o seguinte: "Afinal de contas por que Deus não foi/vai embora?"


No entanto, a questão que atravessa e enviesa essa reflexão é, será que ele esteve ausente da história, para isto basta retornarmos à oração do papa Bento XVI em Auschwitz, quando perplexou o mundo judaico, quando fez a seguinte oração: "Deus onde tu estavas quando isto tudo aconteceu?"  Não preciso, nem dizer que a resposta imediata, veio pelo rabinato do Rio de Janeiro. Deus estava, disse o rabino, onde sempre esteve! A questão é onde estava o Papa naqueles dias? Mas, isso é um outro assunto, voltemos, não obstante, tão importante quanto consideramos a morte, bem como a revanche de Deus é perguntarmo-nos onde estamos situados nesse processo histórico? Quem são aqueles que se autodenominam seguidores da fé? Consumidores religiosos ou discípulos de Cristo?

 

Para se pensar a questão é necessário dizer que o consumismo é um fenômeno recente. Surgiu nas primeiras décadas do séc. XX. Antes disso, como bem apontou Max Weber, a lógica que regia a mentalidade das pessoas com relação ao dinheiro e aos hábitos de consumo era a lógica calvinista da poupança orientada pelo princípio da necessidade!

 

Consequentemente foi o advento da produção em larga escala (revolução industrial), mediada pela propaganda e do crédito, entre os anos de 1920 a 1940, que combinados levaram as pessoas a substituírem aquela lógica austera (ascética) por uma outra de corte mais hedonista, orientada pelo princípio do prazer, do bem-estar. De modo que comprar não visa apenas a satisfação de necessidades, mas um certo status que pode ser vivido, sentido, por aqueles que detém um certo privilégio, isto é, poder de compra.  Mas, afinal existe alguma coisa errada em consumir?

Em si, o ato de consumir não é negativo ou pecaminoso. Ao contrário: ele movimenta a economia, gera empregos, cria riqueza… não há nada moralmente errado em consumir, o problema está no que hoje se tem chamado de hiperconsumo, é o comprar frenético, compulsivo, desconectado do princípio da necessidade e do bom senso. É o consumo como meio de obter satisfação e sentido para a vida.

 

CONSUMIDOR E INDIVÍDUO CONSUMISTA

 

Eis aqui a diferença entre o consumidor e o indivíduo consumista: aquele consome visando suprir uma necessidade objetiva, este visando sanar uma demanda do ser, da subjetividade. Esse ponto precisa estar claro: o consumista não está em busca do bem propriamente dito, mas da satisfação de adquiri-lo. A evidência disso é que ele compra inclusive o que não tem necessidade e, via de regra, o que sua condição financeira não lhe permitiria. Daí que viva sempre endividado. E entediado. Pois a satisfação advinda do consumo, embora real, é fugaz e passageira exigindo sempre novas e sucessivas doses.

 

O mais grave em tudo isso, porém, é o fato de que o consumismo constitui uma lógica e, como tal, transferir-se para outras esferas da vida das pessoas. 

 

Em síntese que ninguém se engane: o indivíduo consumista não consome apenas bens materiais e mercadorias. Na verdade, ele consome tudo: cultura, informação, relacionamentos, lazer, moradia, tecnologia, beleza, saúde, sexo, bem-estar e até religião.

 

Aliás, inclusive foi mais ou menos o que aconteceu com Israel nos dias do profeta Miquéias, onde o povo deixou de adorar e servir a Deus, para tornar-se consumidor de religião. (Mq. 6) Essa ética, com efeito, transformou Israel, num povo que se achava no direito de cobrar coisas de Deus enquanto viviam equivocadamente, inflados pela perversão e impiedade. E mais que isso, os levou a acreditar que poderiam comprar o favor divino com sacrifícios e holocaustos (V.6-7). Em função de todo esse quadro, a espiritualidade daquela gente se desvirtuou perdendo sua força moral. Esse é o grande problema de nos tornarmos consumidores religiosos: perdemos de vista a exigência ética de transformação inerente a toda genuína experiência religiosa. E então passamos a consumir sermões, estudos bíblicos, louvores, reuniões de oração, livros evangélicos, retiros, etc., sem que essas coisas nos afetem, nos ajudem no processo de nos tornarmos pessoas melhores à semelhança de Cristo.

 

Não obstante a atitude do povo, Deus deixara muito claro o que esperava que eles praticassem a justiça, amassem a fidelidade e andassem humildemente com Deus. Como a lógica do consumismo religioso perverteu a compreensão dessas exigências na espiritualidade de Israel? Como ela perverte tais exigências em nossa espiritualidade hoje? (V. 8)

 

Com efeito, deve-se dizer que a lógica do consumo distorce a vida de fé produzindo uma negligência em relação à exigência divina de fidelidade dando ensejo, por conseguinte, a idolatria (v.16).  Ao contrário da religiosidade saudável que se compromete com Deus, porque o ama, porque desejo contentá-lo e fazê-lo somente para ele, o consumismo religioso é volúvel e infiel. A causa disso é óbvia: o consumidor religioso não constrói uma relação de amor com Deus, mas de utilidade. Se, portanto, existe uma outra divindade que melhor me serve, então por que não me voltar para ela? Assim operava a espiritualidade de Israel que, a semelhança do que houve nos dias do profeta Elias, ainda vivia flertando com Baal, coxeando entre ele e Javé, o Senhor. Em nosso caso hoje, a divindade que mais nos seduz é Mamom.

 

Enfim, a lógica do consumo perverte a experiência religiosa provocando uma terrível inversão: ao invés de nos tornar mais humildes, nos torna arrogantes em relação a Deus (v.1-3). O profeta Miquéias, consta que o povo estava reclamando de Deus, pois acreditava ter direito a melhor sorte a despeito de seus maus caminhos. Sem sombra de dúvida, tal atitude nasce da crença, segundo a lógica consumista, de que o consumidor tem sempre razão, detém toda autoridade e, por isso, encontra-se em lugar de fazer exigências. Cumpria a Deus, reduzido ali a figura de um balconista obediente, atender-lhes os desejos. Deus então os confronta solenemente colocando as coisas em seus devidos lugares e pedindo do povo explicações: “Ouçam o que diz o Senhor: 

 

Fique em pé, defenda a sua causa; que as colinas ouçam o que você tem para dizer. Ouçam, ó montes, a acusação do Senhor; escutem, alicerces eternos da terra. Pois o Senhor tem uma acusação contra o seu povo; ele está entrando em juízo contra Israel”. O que o Senhor diria para nós se hoje nos chamasse a sua presença? Será que teria de nos recordar da verdade proferida pelo pregador de Eclesiastes: “Deus está nos céus, e você está na terra, por isso, fale pouco”? Ou, colocando a questão de outro modo: o que nós mereceríamos ouvir dos lábios do Senhor?

 

O critério definitivo para responder essa pergunta é o mesmo que nos ajudará a discernir se nos mantemos ligados a Deus através de uma relação de adoração e serviço ou por uma relação de consumo religioso. Se queremos apenas a sua proteção ou comunhão? 

 

Os retiros, reuniões, inda e vinda na igreja, e os sermões ouvidos tem nos transformado em discípulos de Cristo ou consumidores religioso? 

 

Enfim, encerro essa provocação, problematizando o seguinte: somos pessoas mais parecidas com Jesus, mais cheias de amor, compaixão e indignação perante a injustiça?  Ou nos tornamos seres antropocêntricos, centrados em uma espiritualidade egóica, onde não passamos de consumidores que de tempos em tempos, realizamos trânsito religioso, procurando uma igreja-mercado com um pastor-gerente que atenda as minhas necessidades religiosas? 

 

 

Paulo Mazarem

Teólogo e Cientista da Religião

São José

21 dez. 16

 

REFERÊNCIAS:

 

Consumismo religioso. Disponível em:                                                                                             <https://lemarques.wordpress.com/tag/bens-religiosos/  > acesso em: 21 dez. 16

 

SMITH, W. C. O Sentido e o fim da Religião. Editora Sinodal, São Leopoldo, 2012 p. 130

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