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OS DEMÔNIOS VIERAM DA ÁFRICA OU SÃO INDÍGENAS?





Afinal de contas, qual é a lógica ou véu que oculta a demonização alheia? Quais são as influências que recebemos no itinerário histórico brasileiro para a construção de nossa demonologia?  Para problematizar essas questões, vou me deter no movimento pentecostal de 2ª onda de Paul Freston ou também chamado “neopentecoslismo” como denomina, o sociólogo Ricardo Mariano. Para ser mais cirúrgico vou me ater a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) fundada pelo ex-umbandista, Bispo Edir Macedo que conseguiu ver aos 33 anos de idade, isto em 1977 um jeito novo de se viver a fé. Sabe-se que a IURD é a religião mais sincretizada[1] do Brasil. Isto por que consegue reunir em seu repertório teológico e ritualístico, elementos que residem no judaísmo, catolicismo, no pentecostalismo e no culto afro-brasileiro. 

ENTENDENDO A IURD


A IURD baseia-se na lógica do sacrífico e na teologia da prosperidade, traduzida pelas trocas simbólicas. Logo, o exorcismo abre espaço para o discurso da demonização do outro, onde ocorre uma espécie de embate civilizacional, onde as culturas afro-brasileiras e indígenas numa espécie de fricção interétnica perdem a batalha. É o choque do branco contra o negro e o índio (que em sua miscigenação deu gênese ao povo brasileiro e) que desde a colonização tenta se impor, usando de mecanismos sutilizados como estratégia de triunfo étnico e europeizado, onde o epistemícidio, subsumisse nos discursos sacrossantos para degradar a cultura por ela exotizada e objetificada. Na verdade vivemos numa espécie de Idade Média reversa. Assim velhos temas, como possessão, batalha entre o bem e o mal (maniqueísmo), diabo presente no cotidiano (bogomilismo), doença como manifestação demoníaca, mau olhado, má sorte, etc., saem dos bastidores e vão para o palco (púlpitos neo-pentecostais), revelando que no velório do “Deus ocidental”- a morte de Deus – deuses e demônios disputam, nos corpos das pessoas oprimidas por um espaço para habitar, ainda que provisoriamente. 


HISTÓRIA IGNORADA  

Com a chegada dos navios negreiros, carregados (de várias etnias da África), de homens e mulher escravizados, veio mais que uma massa humilhada de homens, mulheres e crianças. Vieram com eles os seus Deuses (Orixás) uma outra sabedoria e um poder, que rapidamente se espalharia pela costa brasileira. Naquela época, os mercadores de escravos não faziam a menor ideia de que estariam mudando a face do País, com a inserção dos escravos trazidos da África e transportados para o Brasil que acabariam por fim por influenciar a nossa cultura.

Hoje, por exemplo, temos como influência cultural africana o samba - consequentemente a maior festa popular brasileira que é o carnaval, o frevo, o maracatu, a folia de reis, o pagode, a capoeira e tantas outras influências, até mesmo na língua (corrente e dicionarizada), tais como: gogó (garganta), do termo iorubano gogongó; bunda, termo angolano, Êpa! - termo congolês de susto ou admiração- e tantos outros. Além de tantas outras influências culinárias como Acarajé, Vatapá, etc... 


Em suma as religiões afro-brasileiras têm várias configurações derivadas da diversidade de etnias e clãs advindos da África em todo o processo de colonização brasileira, entretanto, diante da grande variedade de vertentes cosmológicas, duas delas irão sobressair-se perante as demais – a umbanda (Rio de Janeiro) e o candomblé (Bahia). A historiografia que prevalece em nossa cultura, ainda é a do homem branco que invisibiliza/ou as versões que constituem a história do nosso país, aliás não esqueçamos do que Rui Barbosa mandou queimar os documentos da escravidão, lembram?



RELIGIÃO E TRANSE COMO INSTRUMENTO  DE TRANS-FESTAÇÃO PSICOLÓGICA E SOCIAL

Quando analisamos a cultura, crença ou religião de outros povos, vamos encontrar nelas grandes fontes de sentido para a vida. Como cientista da religião, sei que existem leituras sociológicas sérias a respeito das tradições espirituais afrodescendentes, particularmente o candomblé e a Umbanda no país. Penso que devemos enquanto cientistas resgatar não só a historicidade credal desses povos como visibilizar a manutenção e permanência da mesma através de suas práticas, crenças e cultura. Com isto, estou querendo dizer que o ethos africano só se preservou e prevaleceu diante de tantos estigmas sociais, jurídicos (legais) e  até mesmo religiosos, por causa da crença nos Orixás e Guias que além de tornarem suportáveis a realidade sofrida pela qual foram submetidos, possibilitou a libertação psíquica e hoje social dos mesmos.  Vamos pensar na Umbanda, uma religião tipicamente brasileira. Como entender que  pretos velhos (negros), caboclos (índios), entidades infantis (crianças) e pomba-giras (mulheres), expulsos da historia oficial de nosso país, voltam para curar as dores de brancos, urbanos e de classe média? Sim, a religião neste aspecto, se reinventa, customiza-se e plasma realidades que em outrora lhe eram des-creditadas, porém essa transformação não se dá sem mística. E as festas religiosas, possuem um papel fundamental para a manutenção e transformação da mesma. Não há dúvidas que o transe é uma espécie de catarse ofertada pela religião a grupos que historicamente foram colonizados, invisibilizados e excluídos sócio-economicamente falando. Com isto, quero sinalizar que o ser humano precisa destes mecanismos para transcender, imposições externas e limitações internas, sejam elas impostas por um grupo social ou por um sexo sobre o outro.

Como minha proposta aqui é problematizar a pergunta temática, então deixarei como recomendação para leitura dois textos. Um de Celeide Agapito Valadares Nogueira "O momento do transe como verificação teológica e transfestação da existência liberdade da alma e do corpo. E "Psiquê nos domínios do demônio - Um olhar sobre a relação exorcismo e cura em um grupo de mulheres fiéis da igreja Universal do Reino de de Deus" de Fernanda da Silva Pimentel.

Voltando-se a questão que aqui pretendo analisar, diante do que já foi dito, temos o dever antropológico de alertar os incautos que os grupos religiosos neopentecostais são os principais propagadores de intolerância religiosa. Estes, em

nome de uma guerra santa, re-afirmam-se combatendo e demonizando os negros, índios, crianças e mulheres.    

Enfim, chegamos no Leitmotiv da questão. E aqui preciso esse insight como um imperativo categórico de apontar para o fato de que nas sessões de batalha espiritual os demônios tem sempre nomes de raiz africana (África) ou indígena (Brasil), nunca Anglo-Saxônica, Inglesa, Alemã e Francesa,. Afinal, Por quê? 

Uma outra coisa interessante a se destacar é que espíritos de mortos não são exorcizados nos cultos neo pentecostais, (espíritos desencarnados do espiritismo), talvez pelo fato de o espiritismo não ser um forte concorrente?

Penso que a religiofagia[2] é uma forma de negar nosso passado, no entanto, negamos e afirmamos simultaneamente o mundo que combatemos. Como diz André Corten: “Sem pré-julgar o plano histórico ou doutrinal, a topografia pentecostal é feita de elementos africanos, religiões afro-brasileiras, de religiosidade popular católica”. Considerando obviamente o conceito de “pentecostalismo” aqui como o de 2ª onda, a luz de Paul Freston e o catolicismo popular já influenciado pelo catolicismo europeu. Não esqueçamos que o Brasil é um país afro-luso-americano. Americano, evidentemente, por sua situação geográfica e sua população indígena; lusitano, por ter sido colonizado pelos portugueses; e africano, não só porque a nação brasileira foi formada pelo trabalho nos negros escravos, [...] profundamente marcada por seus costumes, sua religião e suas tradições.
Deste modo o exorcismo que ocorre nas culturas (neo)pentecostais antes de serem des-possessão de entidades supostamente demoníacas, são ações persecutórias fomentadas pela intolerância religiosa, fundamentalismo, histeria coletiva e psiquismo sincrético cultural-demoníaco estimulado e sugestionado.

Enfim, as entidades, guias e orixás, são associados aos demônios exatamente pelo fato de serem os deuses ou entidades dos negros, dos índios, dos sem vez e sem voz do mundo. Embora, o candomblé e a umbanda tenham passado por um embranquecimento, a demonização ainda segue seu curso.  

Portanto, encerro minha problemática com uma provocação para você, caro leitor. Não estaríamos diante de um racismo religioso? 

Paulo Mazarem
São José
04 Jun. 17








REFERÊNCIAS:

ALMEIDA, Ronaldo. A Igreja Universal e seus demônios: um estudo etnográfico. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2009, ISBN 978-85-78160-34-0. Disponível. < http://www.abhr.org.br/plura/ojs/index.php/plura/article/view/75/pdf_11 >  Acesso: 18 Abr. 15. 
COLAÇO, Thais Luzia. Elementos da Antropologia Jurídica. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008.
BOBSIN, Oneide. A Morte morena do protestantismo branco. Contrabando de espíritos nas fronteiras religiosas. Disponível em: <http://www.est.com.br/periodicos/index.php/estudos_teologicos/article/viewFile/687/621 > Acesso em: 04 Jun. 2017
FERREIRA, FRANKLIN. A Diversidade de Movimentos Religiosos. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=Gpx4Bq2yJ80 > Acesso em: 04 Jun. 17
FESCINA, Daniela. O  que é a pombagira? Disponível em: <http://mundoestranho.abril.com.br/religiao/o-que-e-a-pombagira/ > Acesso em: 04 Jun. 17
SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nàgô e a morte: Páde, Àsèsè e o culto Égun na Bahia, traduzido pela Universidade Federal da Bahia. 13. Ed.- Petrópolis, Vozes, 2008.

SOUZA, Ètianë Caloy Bovkalóvski de. A imagem do Diabo nos livros de Edir Macedo da Igreja Universal Do Reino De Deus. Disponível em: < http://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/25455/D%2020SOUZA%2C%20ETIANE%20CALOY%20BOVKALOVSKI%20DE.pdf?sequence=1&isAllowed=y >: Acesso em: Acesso em: 04 Jun. 17. p. 32




[1] Sincretismo é a fusão de diferentes doutrinas para a formação de uma nova, seja de caráter filosófico, cultural ou religioso. O sincretismo mantém características típicas de todas as suas doutrinas-base, sejam rituais, superstições, processos, ideologias e etc. O que é o Sincretismo. Disponível em: < https://www.significados.com.br/sincretismo/ > Acesso em: 04 Jun.17

[2] Esta seria então uma religião  "religiofágica”, pois se “alimenta” de elementos simbólicos de outras Igrejas (religiões), sempre resignificando-os". Assim, por um avessas, a IURD combate aquilo que, em parte, ajudou a criar. Podemos dizer, portanto, que as religiões afro-brasileiras alimentam seu discurso religioso. “No limite, o pleno sucesso do proselitismo da Igreja Universal em relação às afro-brasileiras, já alcançado ritualmente, levaria ao seu fim” (p. 124). O que leva Almeida a concluir que esta relação de inversão/continuidade com as religiões afro-brasileiras é o mecanismo fundamental na constituição do seu discurso religioso. (Grifos meus)

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