Pular para o conteúdo principal

APRENDENDO A LER A BÍBLIA


                                                      A compreensão é, essencialmente um processo histórico. Hans - Georg Gadammer


“Entendes o que lês?” Essa pergunta foi feita por Filipe num registro do livro de Atos, a um eunuco, alto oficial da rainha da Etiópia, que estava lendo o livro do profeta Isaías sem nada compreender. O evangelista Lucas registra a resposta desafiante do eunuco: “Como poderei entender se não há ninguém que me explique?”. De certo, o tempo passou, mas o desafio permanece, pois hoje não são poucos que, a exemplo do eunuco, admitem não conseguir entender a Bíblia. De acordo com o Dr. Grant Osborne, a leitura da bíblia deve acontecer em três esferas, a saber: aquilo que o texto significa para mim, a busca por aquilo que o texto significava e o ensino do que texto significa.

 

1. AQUILO QUE O TEXTO SIGNIFICA PARA MIM.

(DEVOCIONAL) leitura do coração. 

 

Essa Leitura chamamos de leitura DEVOCIONAL, é o primeiro contato com o texto, onde nossa leitura das sagradas escrituras ocorrem com a intenção de ouvirmos a voz de Deus.  Um grande exemplo é o famoso Salmos 23: “O Senhor é o meu Pastor e nada me faltará”. As palavras desse texto confortam qualquer coração desesperado por cuidado e proteção. Embora não seja uma regra aplicável a todos que recorram as escrituras, é possível dizer que a maioria das pessoas chegam a esse Salmo com esta modalidade de leitura. 

 

 

2. A BUSCA POR AQUILO QUE O TEXTO SIGNIFICAVA (EXEGESE) leitura cuidadosa, de exame; de contexto; de interpretação. 

 

Como destacado anteriormente a Bíblia possui camadas e podemos afirmar sem sombra de dúvidas que essa leitura é uma leitura mais acurada das sagradas letras, uma vez que contará com a ajuda de outras literaturas, comentários bíblicos, bem como dicionários grego e hebraico que ajudem o leitor, a superar a leitura imediata do texto, trazendo uma compreensão mais ampla das escrituras, transportando-o para além dos limites culturais, linguísticos e cronológicos impostas pelo tempo.  Vejamos, o Salmos 23 a partir de algumas Traduções[1]:

 

·       O Senhor é o meu pastor, nada me faltará. (ARC)

.       O Eterno, meu Pastor! Não preciso de nada. (A MENSAGEM)

·       O Senhor é o meu pastor; nada me falta. (KJA)

·       O Senhor é o meu pastor; de nada terei falta. (NVI)

·       O Senhor é o meu pastor; nada me faltará. (ARA)

·       “מִזְמֹ֥ור לְדָוִ֑ד יְהוָ֥ה רֹ֝עִ֗י לֹ֣א אֶחְסָֽר׃” (Old Testament Leningrad Text)

(MIZËMOR LËDÅVID YHWH ROI LO ECHESAR) 

 

Primeiro passo para uma boa hermenêutica de um texto é aplicarmos uma boa exegese (observar aspectos linguísticos, culturais, geográficos em que o texto foi escrito) que tem por objetivo esclarecer ou interpretar minuciosamente um texto ou uma palavra. Nesse sentido a tradução do Salmo 23.1 ficaria assim: Adonai amigo não faltará.

 

O salmista Davi aplica a palavra רֹעִי (Roi ou Ra ‘ah = que significa apascentar, cuidar, alimentar, mas que também significa Amigo). Com isso não estamos afirmando que as traduções estão “erradas”, mas que limitam uma visão mais ampla do texto, uma vez que ao realizarmos uma leitura rápida e superficial, escapa-nos o sentido de que o Senhor (Bendito seja o seu Nome) não quer ser apenas o nosso provedor. Aliás, um relacionamento com alguém que se dê única e exclusivamente pela via da dádiva, acabará por se fundamentar no interesse escuso e não no real propósito da graça que Deus quer nos revelar através do seu cuidado, sempre como um meio, jamais como um fim, uma vez que antes de Deus estar cuidando de nós, ele está conosco.  Como destacado, a construção da frase no hebraico é bem simples. É tão verdade que se invertermos o sentido do Salmos a significação é a mesma: Não me faltará o amigo, meu Deus.


Agora podemos compreender o significado do Salmo 23.1. Esse é um pequeno exemplo, de como uma leitura exegética pode ressignificar a nossa leitura das escrituras. Vale ressaltar mais uma vez que a leitura do Salmos 23. 1 nas traduções que temos, não está errada, mas como falamos, quando verificamos a estrutura da língua hebraica onde o verbo, sujeito e objeto seguem uma sequência linear, diferente das demais línguas, a nossa leitura consequentemente também muda. Aliás, 9% das línguas faladas no mundo segue a estrutura do hebraico. Observe a estrutura abaixo:

 

Verbo (V) +

Sujeito (S) +

Objeto (O)

(Exemplo)

Criou

Deus

os céus e a terra.

(Gn 1. 1)

Disse

o Senhor

a Moisés.

(Êx 20. 1)

Cantou

Israel

Este cântico

(Nm 21. 17)

Sacrificou

Samuel

um cordeiro

(1 Sm 7. 9)

 

As demais línguas têm sequências diferentes:

VSO

Comeu o menino pão.

9% das línguas.

SVO

O menino comeu o pão.

25 % das línguas.

SOV

O menino o pão comeu

31% das línguas.

VOS

Comeu o pão o menino.

2% das línguas.

OVS

O pão comeu o menino.

1% das línguas.

OSV

O pão o menino comeu

1% das línguas.

 


É óbvio que cada língua funciona de uma forma e a tradução deve respeitar isso.  Para Teixeira e Zimmer (2013, p. 60—62) a língua receptora nos soa como estranha, sobretudo para nós falantes do português quando a observamos a partir da língua receptora. 

 

HEBRAICO (VSO)

PORTUGUÊS (SVO)

LÍNGUA RECEPTORA OVS

Sacrificou Samuel um cordeiro. (1 Sm 7. 9)

Samuel sacrificou um cordeiro.

Um cordeiro sacrificou Samuel.

Faz o ferreiro o machado. 

(Is 44. 12)

O ferreiro faz o machado.

O machado faz o ferreiro.

Matou Caim Abel, seu irmão. 

(Gn 4. 8)

Caim matou Abel, seu irmão.

Abel, seu irmão, matou Caim.

 

É interessante que para os nativos daquela língua tal estrutura é facilmente compreendida. Em tese, isso significa dizer que a ordem das palavras, embora para alguns não alterem o sentido, em alguns casos, pode nos transmitir uma visão reducionista do texto. É o exemplo dos Salmos 23.1 “O Senhor é meu Pastor e nada me faltará” do qual temos a partir de uma leitura exegética a tradução,  Não faltará (v) + adonai amigo (s) + objeto (o)?



Embora, na primeira leitura tenhamos um Deus provedor, na segunda o que se possui é Deus onipresente. Em síntese o salmos encerra exatamente essa ideia. “Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum, pois tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me protegem” (Sl 23. 4). 

 

Dessa maneira, cada língua tem as suas expressões idiomáticas e semânticas e não devemos ignorar isso se desejamos transcender a leitura devocional da palavra de Deus para realizarmos uma leitura exegética. 

 

 

3.O ENSINO DO QUE O TEXTO SIGNIFICA (HOMILÉTICA) (QUERIGMA); leitura de aplicação, exposição e prática. 

 

         Queira-se ou não, o ato de abrir e ler a Bíblia implica como já destacado acima em leituras que excedem a nossa subjetiva leitura. Não fomos nós que encontramos a Bíblia, mas a Bíblia que nos encontrou e com ela, leituras que nos antecedem. 


REFERÊNCIAS:


[1] Neto, A. Taranto. Você interpretou o Salmo 23 de maneira errada. Disponível em: < https://www.gospelprime.com.br/voce-interpretou-o-salmo-23-de-maneira-errada/: 13 fev.  22


Stuart, Douglas. Entendes o que lês? 3. ed. revisada e ampliada. São Paulo: Editora Vida Nova, 2021.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

UMA BREVE HISTÓRIA DO CULTO AO FALO

Uma dose de conhecimento histórico, i.e., religiológico, (sim só um pouquinho) é suficiente para deixar nossos pudores embaraçados, uma vez que sexualidade sempre estivera imbricavelmente relacionado a religião parte constitutiva da humanidade.                              Uma historicização a respeito do “falo” ou de seus simulacros (objetos construídos para veneração)  nos períodos arcaicos da história humana, revelará que toda esta carga latente de erotização que (o Ocidente) se dá (eu) ao pênis hodiernamente, está equidistante da concepção que os antigos tinham a respeito da (o) genitália (órgão sexual) masculino.  Muitas culturas, incluindo o Egito, Pérsia, Síria, Grécia, Roma, Índia, Japão África até as civilizações Maia e Asteca viam no culto ao pênis uma tentativa de alcançar o favor da fertilidade e à procriação da vida.     Porém, ao que tudo indica o falocentrismo  cúltico  veio da Índia, com a prática do Brahman de adorar o pênis do deus supremo, Shiva.  

RESENHA DO FILME TERRA VERMELHA

Paulo R. S. Mazarem O Filme “Terra Vermelha" de 2008, direção e Roteiro do chileno Marco Bechis , bem como os demais roteiristas Luiz Bolognesi, Lara Fremder foi produzido com a finalidade de dilucidar a realidade enfrentada pelos índios Guarani- Kaiowá e descrever a perda espacial de seu território no Mato Grosso do Sul, expropriado pelos Juruás (homens Brancos). A co-produção ítalo-brasileira Terra Vermelha , é uma obra com teor político, e torna-se quase que indispensável por assim dizer para quem deseja compreender a questão e realidade indígena de nosso país. Ele descreve como a nova geração de índios, isto é, os jovens reagem diante de um novo sistema que lhe é imposto, onde seu trabalho, cultura e religião não possuem valor algum, efeitos esses decorrentes das apropriações indébitas de terras que em outrora eram suas por nascimento, para não utilizar o termo “direito” que nesse caso, não era um saber do conhecimento

BOB ESPONJA, PATRICK E SIRIGUEIJO - REPRESENTAÇÕES SUBJETIVAS & COLETIVAS DO COTIDIANO

Esses tempos rolou um papo nas redes de que Bob esponja e Patrick eram gays, no entanto eles estão mais para anjos do que para hetero ou homossexuais, sim eles são seres assexuados. De acordo com Stephen Hillenburg (criador do desenho), Bob Esponja é ingênuo,  arquétipo do personagem que está(eve) sempre por aí, do indivíduo que vive e se comporta como uma criança. Já Patrick  não é ingênuo, mas burro.   Ambos formam uma dupla interessante, pois os dois juntos  pensam que são adultos e gênios.   De fato, Bob Esponja não (nunca)  percebe as trapalhadas que ambos cometes e Patrick se acha o melhor cara do mundo. Mas não esqueçamos o Mr. Sirigueijo. O senhor Sirigueijo, (chefe do Calça Quadrada na lanchonete)   tem uma história mais íntima, na verdade ele foi inspirado num chefe que Hillenburg conheceu quando trabalhou num restaurante... de frutos do mar.   O mesmo diz o seguinte: "Eu era da Costa Oeste americana, ele era da Costa Leste”. Ele tin