Paulo Mazarem*
Deve-se admitir que para um cristão (believer) essa afirmação, em certa medida, pode até gerar uma sensação desconfortável. Porém Desmond sem hesitar levanta sua voz, para dizer ao mundo, inderrogavelmente:"Deus não é Cristão". (TUTU, 2012)
A reação provocada por Desmond Tutu aos cristãos, (que certamente julgam-se detentores do divino) se faz pertinente uma vez que sua proposta é desmonopolizar o divino de um grupo de pessoas que dogmatizarão um saber teológico exclusivista e eclesioncentrista. Deus não quer, segundo ele ser patrimônio exclusivo de um grupo somente.
Acredito que a intenção é transcender (como diria Paul Tillich) aquelas reduções provincianas de análise teológica e conduzir (os leitores cristãos ou não-cristãos) aqueles que estiverem dispostos a encarar o desafio de avançar em direção a outras paisagens teológicas, religiosas e culturais.
É claro que avançar aqui é um eufemismo para outras cosmovisões, saberes, experiências e conhecimentos que se mostram diversificadamente em outras culturas, com outro(s) modus operandi, no entanto tendo como fonte primária e unívoca a compreensão de que todas as coisas procedem dele e para ele, isto é, Deus, mesmo aquelas culturas (a-theias) como é o caso do budismo e do jainismo. Esse olhar compreensivo só será possível por meio de uma dialogia como diria Bakhtin onde o eu e o outro se relacionam empaticamente.
Ora, talvez esse seja o grande desafio ou obstáculo a ser transposto o de anular o narciso teológico e culturalista que coloca-nos em posição de superioridade epistemológica em relação ao(s) outro(s) e ao(s) sistema(s) ou ideologia(s) religiosa(s) (candomblé, islamismo, católicos, etc...) como indigno(s) e imerecedor(es) do favor divino, pelo fato dessas mesmas categorias teológicas serem heteroglossolaliais (falar em outras línguas diferentes).
Sabemos que é (im)possível uma (re)outritização, uma vez que haja um exercício e movimento ético libertário em direção a alteridade, esse movimento em direção ao desconhecido deve e precisa ser realizado (ainda que com esforço) na tentativa de participar-mos e interagir-mos com a(s) diferença(s) seja(m) elas culturais, ideológicas, credais ou políticas.
Penso que Tutu quer re-análisar concepções soteriológicas sem depreciar o fato de que Deus é o Ser imutável, eterno e uno, não insular, mas peninsular, não territorial, mas global. Sabemos que estamos diante de um outro desafio que é o de estabelecer um consenso universal a partir do uno em detrimento do plural.
No entanto, fica evidente que Tutu não quer partir de um ponto de vista, mas de um metaponto de vista do conhecimento do conhecimento como diria Morin.
Creio que por esse motivo seja impossível compreender o que DT quer propor enquanto provocação se não houver seriedade investigativa em sua análise com um olhar do todo e não da(s) parte(s), pois todo reducionismo é excludente e totalitário. No entanto quero problematizar o fato de que em instância filosófico-racional ele não recorre aquelas velhas categorias de conhecimento cartesiano, como é o caso do “cogito ergo sum”, bem como às fórmulas eurocêntricas de colonização do pensar. Onde o Eu pensante sempre parte de um ponto de vista e não do metaponto, além do mais essas duas operacionalizações contidas no penso, logo existo encontram premissas semelhantes e óbvias, uma vez que que o (ser) pensante não pode pensar se não existir, logo existir é consequência da consciência de um ser que pensa, mas não pensa só, pensa e sabe que pensa por causa do outro, porém não reconhece o outro como ser pensante, só a si.
E aqui chegamos na questão chave por que o pensar monoepistemológico é sempre epistemicída, pois não aceita outra forma além da já inculcada como paradigma soberano. De modo que esse epistemicídio tem por finalidade primeira exterminar, degradar e por fim invisibilizar o outro também pensante seja ele americano, asiático, africano, etc...
Assista logo abaixo esse documentário e veja o poder do paradigma epistemológico e colonizador.
Recorri ao cogito ergo sum para des-invisibilizar uma forma de pensamento sútil porém arbitrária que se inscreveu em nossa cosmovisão no Ocidente e no ciente (ciência) e não a percebemos nos relacionamentos e nas vivências nano-micro e macro sociais da vida.
É esse Ego que precisa ser confrontado com a alteridade e com a diferença. De modo que essa interação possa produzir consciência (s) de identidade alheia, do outro como ser portador de identidade. Ora, é isso que DT mostra na obra em sua abordagem a respeito do [2]ubuntu,
onde o imperativo é "existo por que pertenço e não penso, logo existo". O que em paráfrase equivale à explicação de que o eu (insular) tem dificuldade de compreender
o nós (peninsular).
Acredito que é exatamente por causa do “Alter
ego”, do “eu sou eurocêntrico" que nossa relação com a diversidade está em apuros.
Quando cristãos e não cristãos entenderem isso,
vamos compreender e não degradar, vamos perceber não invisibilizar, vamos
incluir e não excluir
as diferenças.
O grande sonho de Deus é a unidade mesmo dentro da diversidade, assim como o corpo que mesmo sendo um possui muitos membros da mesma forma, Deus sendo um tem muitos povos, que ele chama para si, pois todos são obra prima de sua criação convidados para se reconhecer enquanto seres criados a sua imagem e semelhança.
Deus quer Ubuntu não entre seus filhos. Quer solidariedade não solitariedade. Vejamos o que quer significar ubuntu em uma outra paisagem cultural, mas que expressa esse sonho de Deus para o mundo.
O grande sonho de Deus é a unidade mesmo dentro da diversidade, assim como o corpo que mesmo sendo um possui muitos membros da mesma forma, Deus sendo um tem muitos povos, que ele chama para si, pois todos são obra prima de sua criação convidados para se reconhecer enquanto seres criados a sua imagem e semelhança.
Deus quer Ubuntu não entre seus filhos. Quer solidariedade não solitariedade. Vejamos o que quer significar ubuntu em uma outra paisagem cultural, mas que expressa esse sonho de Deus para o mundo.
De
acordo com Domingues:
A jornalista e filósofa Lia Diskin durante o Festival
Mundial da Paz, ocorrido em Florianópolis, em 2006, contou o seguinte caso de
uma tribo na África: Um antropólogo estava estudando os usos e costumes da
tribo Ubuntu e, quando terminou seu trabalho, teve que esperar pelo transporte
que o levaria até o aeroporto de volta pra casa. Como tinha muito tempo ainda
até o embarque, ele propôs, então, uma brincadeira para as crianças que achou
ser inofensiva. Comprou uma porção de
doces e guloseimas na cidade, colocou tudo num cesto bem bonito com laço de
fita e colocou debaixo de uma árvore. Aí ele chamou as crianças e combinou que
quando ele dissesse “já!”, elas deveriam sair correndo até o cesto e a que
chegasse primeiro ganharia todos os doces que estavam lá dentro. As crianças se posicionaram na linha
demarcatória que ele desenhou no chão e esperaram pelo sinal combinado. Quando
ele disse “Já!” instantaneamente todas as crianças se deram as mãos e saíram
correndo em direção à árvore com o cesto. Chegando lá, começaram a distribuir
os doces entre si e a comerem felizes.
O antropólogo foi ao encontro delas e perguntou por que elas tinham ido
todas juntas se uma só poderia ficar com tudo que havia no cesto e, assim,
ganhar muito mais doces. Elas simplesmente responderam: – Ubuntu,
tio. Como uma de nós poderia ficar feliz
se todas as outras estivessem tristes?
Ele ficou pasmo. Meses e meses trabalhando nisso, estudando a tribo e
ainda não havia compreendido, de verdade, a essência daquele povo. Ou jamais
teria proposto uma competição, certo?
Ubuntu significa: “Eu sou porque nós somos” ou, em outras palavras “Eu
só existo porque nós existimos”. “Como
uma de nós poderia ficar feliz se todas as outras estivessem tristes?” A
resposta singela da criança, é profunda e vital, pois está carregada de valores
como respeito, cortesia, solidariedade, compaixão, generosidade, confiança –
enfim, tudo aquilo que nos torna humanos e garante uma convivência harmoniosa
em sociedade. (Grifos Meus)
Ora,
Ubuntu é uma cosmovisão de mundo que nós cartesianos
precisamos apreender em todas as dimensões. Não apenas na dimensão
relacional do “nós”, com o outro, mas
na relação com a natureza (alteridade).
Pois se não tratamos com igualdade o outro que é um ser dotado de dignidade estariamos nós tratando a natureza com a dignidade e respeito que outras culturas tem tratado?
Nós cristão cartesianos poderíamos colocar nossa [3]ecoespiritualidade à prova?
Essas questões devem estar relacionadas com a provocação
inicial de DT. Se Deus é Cristão por que nós cristãos em todos os tempos,
perseguimos (culturas)
exterminamos,(povos) destruímos,(natureza) e invisibilizamos (saberes) e outras experiências culturais na terra, como foi o caso por exemplo das cruzadas e as
grandes descobertas (eufemismo para colonização) que em nome da auri sacra fames (fome pelo lucro) realizou o abominável em nome de Deus.
Estou certo de que alguém pode dizer que a generalização e o uso do Deus não é cristão é um equivoco (de Tutu) que não pode ser cometido uma vez que precisamos descrever quem é esse cristão por ele descrito, no entanto o fato é que nós todos sejam católicos, anglicanos, protestantes e pentecostais, precisamos revisar nossa fé e nosso modus pensandi teológico a partir daquele metaponto de vista já problematizado onde a pluriculturalidade supera o ponto de vista ou aquilo que Boaventura chama de sociologia das ausências.
exterminamos,(povos) destruímos,(natureza) e invisibilizamos (saberes) e outras experiências culturais na terra, como foi o caso por exemplo das cruzadas e as
grandes descobertas (eufemismo para colonização) que em nome da auri sacra fames (fome pelo lucro) realizou o abominável em nome de Deus.
Estou certo de que alguém pode dizer que a generalização e o uso do Deus não é cristão é um equivoco (de Tutu) que não pode ser cometido uma vez que precisamos descrever quem é esse cristão por ele descrito, no entanto o fato é que nós todos sejam católicos, anglicanos, protestantes e pentecostais, precisamos revisar nossa fé e nosso modus pensandi teológico a partir daquele metaponto de vista já problematizado onde a pluriculturalidade supera o ponto de vista ou aquilo que Boaventura chama de sociologia das ausências.
Vejamos
o que nos diz, Boa ventura de Souza Santos:
Antes que alguém me pergunte se Deus não cristão por que somos cartesianos? Vou me adiantar, não. Devemos preencher o lastro histórico que separa Cristo de Decartes para apontar para o fato de que essas imbricações ocorreram cronotópicamente, isto é, em um tempo e espaço no tempo, que emoldurou o cenário que hoje estamos assentados. Embora saibamos que Cristo é Deus, ele não quer ser Deus apenas de cristãos. Que egoísmo nosso pensar que
Deus é apenas nosso e não de outros.
De fato nos esquecemos que Cristo antes de encarnar, Ele já era Deus. E que sua encarnação tem por objetivo mostrar que ele nos criou para si no sentido de finalidade e não de posse, isto é, de tornar-se um de nós, humano. Mas aqui está o grande desentendimento por que pensamos que para ser de Deus é necessário ser cristão e não humano.
Quando na verdade o que comprova nossa aceitação perante Deus é nossa humanidade e não nossa religiosidade. Portanto, ser cristão não é garantia para ser de Deus. Assim como ser judeu não é sinonímia nem garantia de pertencimento no divino. Vou além de DT, para dizer que Deus não é calvinista, nem arminiano, nem judeu, nem cristão, nem hindu, nem alemão, nem africano, nem japonês, nem chinês, etc... Deus é humano.
De fato nos esquecemos que Cristo antes de encarnar, Ele já era Deus. E que sua encarnação tem por objetivo mostrar que ele nos criou para si no sentido de finalidade e não de posse, isto é, de tornar-se um de nós, humano. Mas aqui está o grande desentendimento por que pensamos que para ser de Deus é necessário ser cristão e não humano.
Quando na verdade o que comprova nossa aceitação perante Deus é nossa humanidade e não nossa religiosidade. Portanto, ser cristão não é garantia para ser de Deus. Assim como ser judeu não é sinonímia nem garantia de pertencimento no divino. Vou além de DT, para dizer que Deus não é calvinista, nem arminiano, nem judeu, nem cristão, nem hindu, nem alemão, nem africano, nem japonês, nem chinês, etc... Deus é humano.
Assim
como humano é o africano, o japonês, o chinês, o alemão, o judeu, o muçulmano,
o calvinista e o arminiano.
Entender a humanidade é essencial para pertencer a divindade, de modo que Deus não é [...], mas é [...]
* Cientista da Religião (USJ), Teólogo (FACASC) e Ênfase em Teologia Sistemática (FACASC).
REFERÊNCIAS:
MORIN,
E. O Método 3 O conhecimento do conhecimento. 4ª Ed. – Porto Alegre: Sulina,
2008. p. 26
TUTU,
Desmond. Deus não é cristão. – Rio
de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2012. p. 41
DOMINGUES,
Joelza E. “Ubuntu, o que a África tem a nos ensinar. Disponível em: < http://www.ensinarhistoriajoelza.com.br/ubuntu-o-que-a-africa-tem-a-nos-ensinar/ > Acesso em: 03 Abr. 16.
Boaventura
de Sousa Santos - Epistemologias do Sul (PT, Entrevista ALICE 5/9). Disponível
em < https://www.youtube.com/watch?v=URgY9H2NvZM
> Acesso em 03 Abr. 16.
[1] Desmond Tutu é um dos mais conhecidos
ativistas dos direitos humanos da África do Sul que venceu o Prémio Nobel da
Paz de 1984 pelos seus esforços em resolver e acabar com o apartheid. Nascido
em 1931 em Klerksdorp, Transvaal, África do Sul, ele tornou–se o primeiro
arcebispo anglicano negro da Cidade do Cabo e Joanesburgo. Conhecido como a voz
dos sem voz sul–africanos negros, ele foi um crítico ferrenho do apartheid.
Tutu também apoiou o boicote económico da África do Sul, sem deixar de
incentivar a reconciliação entre as várias facções associadas com o apartheid.
Defensores dos Direitos Humanos. Disponível em: <
http://br.youthforhumanrights.org/voices-for-human-rights/champions/desmond-tutu.html. Acesso em: 03 Abr. 16
[2] Em xhosa, dizemos: “Ubuntu ngumtu ngabantu”. É muito difícil passar
essa expressão para outras línguas, mas poderíamos traduzi-la dizendo: “Uma
pessoa é uma pessoa por intermédio de outras pessoas. Precisamos de outros
seres humanos para aprendermos a ser humanos, pois ninguém vem ao mundo totalmente
formado. Não saberíamos como falar, andar, pensar ou comer como seres humanos a
não ser que aprendêssemos como fazer essas coisas com outros seres humanos.
[...] humano solitário é uma contradição.
[3] O
termo"Eco-Espiritualidade" foi utilizado pelo geólogo Thomas Berry em sua proposta para uma
revolução de costumes conhecida como "Sociedade Ecozóica" - a criação
de uma nova forma de vida, pautada em valores que restaurem a ligação entre o
ser humano e a natureza não apenas pela necessidade física de se combater a
degradação ambiental, mas também como uma filosofia/religião que traga
novamente essa comunhão com o mundo também à nossa mente e à nossa alma - como
os povos da Antiguidade. Eco-Espiritualidade:
Um conceito
ancestral de Vida Sagrada <http://claudiocrow.com.br/ecoespirito-intro.htm
> Acesso em: 03 Abr. 16
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