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RISO E AS SUAS FACES PSICOLÓGICAS E POLÍTICAS


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A Bíblia, código moral do judaico-cristão, condena o riso em vários momentos. Se os Evangelhos nunca relatam Jesus a rir, Deus ri, mas com raiva ou desdém [Sl 59:8; Pv 1:26].

Não sendo este trabalho uma discussão exegética, este regresso ao texto religioso vem a propósito da necessidade de secessão entre o riso e o humor.

Na Antiguidade grega, a maior parte dos comentários filosóficos sobre humor e riso estavam focados no riso jocoso e gozador, no riso que diminui uns e hiperboliza outros [Aristóteles 2011] em vez de tratar do riso originado na comédia e das piadas. Tal como nas escrituras judaicas, também alguns gregos ilustrados condenavam o riso [Platão 360 a.C.; Isócrates 1872; Epiteto 2012].

Na República, Platão sugere que os Guardiões da cidade devessem evitar o riso e mesmo as pessoas comuns não se devem deixar contaminar pelo riso em excesso, porque o filósofo considerava o riso como uma emoção que ultrapassa o autocontrole [A República, III-388e].

As instituições monásticas medievais, sem grandes surpresas, tinham regras muito restritas quanto ao riso. A Regra de São Bento pede recato aos monges de tradição cenobita e ordena que se mantenham afastados da risota e da galhofa.

O personagem Jorge de Burgos, o bibliotecário aficionado por Umberto Eco [2002] em O Nome da Rosa, defende que o riso não deve ser livremente permitido como meio para afrontar a adversidade do dia-a-dia, até porque pode por em causa a autoridade da Igreja. 

No mesmo romance, Guilherme de Baskerville, um defensor do riso como sinal da racionalidade humana, embarca numa busca do livro perdido de Aristóteles, o segundo volume da Poética, dedicado a comédia e onde se encontraria uma apologia do riso [Eco 2002].  Para Guilherme, o riso não estava destinado a apreciação jocosa, mas sim a edificação moral [Góes 2009]. Pois, macacos não riem, resposta da razão (Barkerville) ao fundamentalismo medieval burgeriano. 

Nesta perspectiva moralmente edificante, o riso pode ser também uma das formas mais poderosas de expressão humana. Sanders [1995], ao elaborar uma história das atitudes em relação ao riso e como elas mudaram desde o mundo antigo até o presente, revela a forma como o riso se foi tornando uma arma eficaz para a subversão política.

As concepções clássicas e mais comuns no discurso científico sobre o humor são na sua essência naturalistas e positivistas, atribuindo ao riso a característica de ser uma natural expressão da alegria, e não questionando a normatividade da alegria como um estado de espírito de caracter positivo.

O riso, por ser uma expressão humana, mas também social, tem uma marca retórica. Como todos os mecanismos retóricos, o riso tem a sua antítese. 
E ao oposto retórico do riso que Billig [2005] chama o “não-riso” Numa piada falhada, o receptor pode não entender ou sentir-se ofendido. Pelo contrário, a não existência de riso não significa que determinada situação ou discurso não contenha nenhum elemento gracioso, humorístico ou cômico. Muitas das series de comedia televisiva mais recentes deixaram de ter publico ao vivo ou risos pré-gravados, o que lhes confere, não surpreendentemente, um caracter menos popular e mais atrativo para os cultores de produtos revestidos de maior capital cultural.
 O riso pode ser uma chave interpretativa do sucesso da negociação do contrato social do humor. Ao nível da interação individual, o riso pode ser visto de fato como consentimento ou afirmação de aprovação. Significa que uma piada foi entendida e aceita pelo público. 

Em contexto de grupo, este resultado pode ser ainda mais pronunciado. Há um certo efeito de acumulação do riso que curiosamente só se manifesta ao nível do grupo.                        É praticamente consensual entre os comediantes que e a primeira gargalhada que conta [Carter 2001; Byrne 2002]. Assim que as pessoas se começam a rir parece que o riso subsequente se torna mais imediato. Para muitos comediantes, aquela gargalhada inicial e suficiente para afastar todos os nervos antes do espetáculo e dar-lhes a confiança de conseguir o seu melhor desempenho [Byrne 2002: 91]. Assim, o velho adágio segundo o qual o riso é algo contagiante soa verdadeiro. Collins [2005] refere-se a este fenômeno como um fenômeno de sintonia (attunement).

O grupo que opera este tipo de riso por acumulação também consegue criar um sentimento de coesão e de solidariedade entre pares. E uma forma de consenso tácito que se constrói em torno de uma audiência cômica que se torna ela própria cúmplice dessa acumulação. A resposta da audiência pode ser examinada sob vários pontos de vista. O tempo cômico da piada e o efeito, a quantidade e a duração dos aplausos, bem como a sincronia da resposta, entre outros aspectos, foram já sugeridas como meios de análise do sucesso e da eficácia da comédia.

As disciplinas cientificas mais concentradas no ato fisiológico de rir tem sido a Psicologia e Medicina, com uma fortíssima orientação terapêutica, no sentido de provar que o riso e uma atividade que não só demonstra felicidade como também a gera [Coser 1960; Berlyne 1972; Dwyer 1991; Kellaris e Cline 2007; McGraw e Warren 2010]. 

Muito embora estes estudos estejam numa linha de interrogações distantes deste trabalho, a Sociologia não deve estar desatenta aos significados discursivos que estas investigações implicam. Desde logo, uma compulsão normativa pelo bem-estar e pela saúde atribui ao riso – mesmo que não a comicidade – um papel curativo que, por desatenção epistemológica aos intrincados significados e papéis sociais em jogo no humor, pode afinal não passar de um placebo.


HUMOR

A palavra humor não era usada com o sentido contemporâneo de divertido ou engraçado até o século XVIII. Etimologicamente, a palavra deriva do vocábulo humor, que em latim significa líquido ou fluido. Na tradição da Antiguidade Clássica, o bem-estar dependia do equilíbrio dos quatro fluidos no corpo humano, o sangue, a fleuma, a bílis amarela e a bílis negra. Desta forma, os traços de personalidade estariam diretamente relacionados com os desequilíbrios dos fluidos.

Os indivíduos, conforme o fluído preponderante no corpo, poderia apresentar um dos quatro estados emocionais: sanguíneo, fleumático, colérico e melancólico, correspondentes aos humores acima indicados.

A evolução do vocábulo e seus derivados até aos nossos dias parece estar diretamente relacionada com esta descrição etimológica. As expressões mau-humor ou mal-humorado não são utilizadas para fazer referências a alguém que diz, mas piadas, mas sim a quem se apresenta num estado emocional indesejável. Por outro lado, o humor negro, designação cunhada por André Breton [Carroll 2014], passa por ser um humor frio e seco, como a bílis negra, e também cínico e cético, como o estado melancólico que esta provocaria [Critchley 2002; Burton 2014]. Por fim, a relação estabelecida durante séculos entre riso e um estado de humores alterados terá aproximado a noção clássica a concepção contemporânea de humor, vocábulo que apresenta hoje o mesmo sentido e a mesma etimologia em todos os idiomas originários da Europa

O humor apresenta-se em categorias muito diversificadas de formas e estilos. A ironia, a piada espirituosa, o humor físico (preparado ou acidental), o ridículo ou a parodia são alguns dos exemplos de formas humorísticas.

Estas compreendem uma variedade de mecanismos linguísticos e retóricos, assim como físicos, usados para comunicar, socializar e interagir.

IRONIA


A ironia é assim um fenômeno nebuloso e fluido, fala-se de ironia trágica, cômica, de modo, de situação, filosófica, prática, dramática, verbal, retórica, auto-ironia, ironia socrática, romântica, cósmica, do destino, do acaso, de caráter – conforme a perspectiva de nomeação –, que pode preocupar-se com efeito, meio, técnica, função, objeto, praticante, tom ou atitude. Além disso, cada autor tem a sua própria ironia, que não difere apenas em técnicas, estratégias ou estilos de época. 


A ironia é, portanto, uma estrutura comunicativa que se relaciona com sagacidade; é mais intelectual e mais próxima da mente que dos sentidos, é mais reflexiva e consciente que lírica ou envolvida. 

 A IRONIA RETÓRICA


Se a retórica é, em sentido lato, segundo Lausberg, “um sistema mais ou menos bem elaborado de formas de pensamento e de linguagem, as quais podem servir à finalidade de quem discursa para obter, em determinada situação, o efeito que pretende” (1972, p. 75), sendo em sentido restrito a “arte do discurso partidário”, compreende-se porque a ironia retórica está sempre, pragmaticamente, a serviço de um partido, de uma ideologia, de uma “verdade”.

O conceito de ironia retórica é assim apresentado por Lausberg:

  • A ironia (simulatio, illusio, permutatio ex contrario ducta; em grego ironia = antífrase), como tropo de palavra (...) é a utilização do vocabulário que o partido contrário emprega para os fins partidários, com a firme convicção de que o público reconhecerá a incredibilidade desse vocabulário. Deste modo, a credibilidade do partido que o orador defende é mais reforçada e de tal modo que, como resultado final, as palavras irónicas são compreendidas num sentido que é contrário (...) ao seu sentido próprio. (Cf. Lausberg, 1972, p. 163-164). 


Um dos exemplos usados por Lausberg é o do discurso de Marco Antônio, da peça  Julius César, de Shakespeare , em que, através de uma manobra irônica, o orador inverte a situação política, movendo o povo a uma ação violenta que desfaz a vitória dos conspiradores que acabavam de conquistar o poder. Reconhecidamente amigo do chefe político assassinado, Marco Antônio seria naturalmente opositor dos conspiradores. Coloca-se apesar disso do seu lado, concordando aparentemente com a ação praticada por eles (o assassinato de Júlio César), e elogiando publicamente o chefe dos revoltosos. No seu discurso, Marco Antônio usa porém a ironia retórica, de modo que a expressão de sentido positivo – “Brutus é um homem honrado” – funciona ironicamente, depois de seis repetições, sendo compreendida em sentido negativo pelo povo, que se volta então contra Brutus e seus companheiros.

Seria interessante observar a perfeição do exemplo que contém claramente os elementos apontados por Lausberg: partidos em oposição, receptores capazes de perceber o jogo que se estabelece, bem como uma perspectiva em que positivo e negativo se invertem, resultando no jogo de credibilidade / incredibilidade e, principalmente, numa inversão relativa ao partido que está no poder. 

Isso mostra que a ironia atua de forma intelectual, provocada pelo estranhamento, pelo inesperado e pelo paradoxal, que entram em confronto com o ouvinte do dito irônico (seu leitor ou receptor) é convidado a fazer o seu próprio raciocínio, lançando pontes entre o paradoxo percebido e o significado pretendido daquilo que ouve. O resultado positivo dessa tarefa, ainda segundo a retórica, traz prazer a esse ouvinte que reconhece assim a própria inteligência e torna-se cúmplice do autor do dito irônico, reconhecido como autoridade a ser respeitada.

Esse tipo de ironia será assim basicamente um tropo, uma volta da seta semântica em que a palavra passa a ter um outro conteúdo / significado, diferente do conteúdo / significado primitivo. Constitui-se então como um ornato, um luxo do discurso, cuja função será a de um sedutor deleite pragmático que, jogando com a expressão linguística e com o prazer da compreensão, pode fazer chegar a um conhecimento afetivo capaz de preencher possíveis
lacunas da convicção intelectual. 

Ao mesmo tempo pode-se observar que a retórica do discurso irônico está sempre ligada a algum tipo de disputa pelo poder e pela dominação do outro.

Em relação à peça de Shakespeare, seria interessante notar ainda que não se restringe ela a trabalhar a ironia enquanto tropo de palavra, ampliando-se para um pensamento mais abrangente; e também que é estranha a atitude de Marco Antônio, amigo do assassinado que, encontrando o amigo morto, apóia os assassinos que se tornaram os novos donos do poder e se oferece para falar ao povo em seu nome. Se o povo observa esse estranhamento, percebe incongruências na fala de Marco Antônio e decodifica a ironia nela presente – e que está no fato de a personagem elogiar um inimigo –, o mesmo não acontece com os revoltosos, enganados pela atitude dissimulada do amigo de Júlio César, que transforma assim os valentes conspiradores em ingênuos derrotados.

O que se pode concluir, a partir desse exemplo, é que a ironia não é apenas uma questão de vocabulário; não se resumirá, portanto, a uma inversão de sentido de palavras, mas implicará também atitudes ou pensamentos, dependendo a sua compreensão de o receptor perceber que as palavras não têm um sentido fixo e único, mas podem variar, conforme o contexto. “Brutus é um homem honrado” pode também significar o oposto – que Brutus é um traidor –, e que Marco Antônio não o apóia, como parece. São testadas assim a atenção e a capacidade de percepção dos interlocutores envolvidos em disputas e jogos de enganos intradiegéticos. 

Seria aliás interessante lembrar, nesse sentido, a ilha de Pleurilie, de que fala Guido Almansi (1978), espaço em que todas as formas de comunicação utilizam lágrimas, gritos guturais, caretas e arrulhos. Sabe-se que as lágrimas são aparentemente o meio mais eficaz de mobilizar o outro, pois tradicionalmente o fenômeno do choro informa sobre incômodos interiores – tensão, tristeza, problemas emocionais, dor física etc; assim, toda a comunicação fundada sobre lágrimas apóia-se neste pressuposto tácito: se alguém chora, é porque está infeliz ou necessita de ajuda. 

Na ilha de Pleurilie, entretanto, as pessoas desenvolveram a capacidade de chorar quando querem: introduziram um fenômeno cultural em um domínio visto como da natureza e assim adquiriram enorme influência sobre aqueles que ainda acreditam no caráter natural das lágrimas. Bruxos das lágrimas, esses – que são na verdade os bebês do quarto próximo –, dominam seus concidadãos com a ironia de sua arte insidiosa, pois dissimulam cuidadosamente seus poderes ocultos para enganar e pegar o próximo numa armadilha. Suas lágrimas são percebidas como autênticas, inocentes, honestas e naturais. E são de fato muitas vezes desonestas, astutas, perversas, insinceras e culturais, ironicamente utilizadas para exercer o poder sobre os pobres adultos envolvidos em suas artimanhas (constituem um estranhamento relativo ao que se conhece dos doces e indefesos anjinhos...).

Essa ironia retórica usuária do monologismo e colocada a serviço das ideologias finge ignorar a constituição fluida da linguagem e o deslizamento de sentido resultante da impossibilidade de fixar significantes a significados. Retoricamente, o que equivale a dizer, enfaticamente, mas também enganadoramente, já que a ênfase retórica repousa sobre um vazio de conteúdo ou sobre um conteúdo enganoso, essa ironia busca estabelecer verdades que interessam a determinada perspectiva. 

A questão da relatividade do mundo e do homem, supostamente sujeito mas assujeitado produto de uma cultura – é assim normalmente deixada de lado ou relegada a segundo plano, conforme o interesse do ironista por determinada significação. Por isso mesmo a ideia de partidos em oposição é fundamental para a ironia retórica, que pode apresentar-se através de personagens em luta pelo poder, ou pela incongruência entre uma voz enunciadora e outras vozes do texto. 



Paulo Mazarem
Florianópolis
25 Dez 19

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