Não há dúvidas de que o documentário: Atlântico Negro: na Rota dos Orixás é uma longa-metragem que descreve com exata e cirúrgica precisão o encontro de dois universos geograficamente distintos, que se fundem pela tradição e que se perpetuam pela cultura religiosa, plasmando valores e vivencias, cuja síntese explode de equivalentes tanto nos hábitos alimentares, cores, língua, comportamento e até nos gostos musicais. O Brasil está na África e a África está no Brasil resumidamente, este é o leitmotiv que plasma os cinquenta e três minutos e quarenta e oito segundos que compõem a película.
É importante ressaltar que nomeadamente a “modernidade” está longe de esboroar o impacto e a força exercida pela tradição sobre os povos de ancestralidade, uma vez que o modus operandi dessas culturas não estão/foram subjugadas pela racionalidade científica, nem mesmo religiosa de outras culturas/culto. O rito e o mito africano repelem qualquer forma de amnésia histórica e cultural, ressignificando inclusive experiências tétricas percepcionadas pelas colonizações e travessias ao novo mundo, encontrando na “terra dos tupiniquins” um novo jeito de “ser” para se “pertencer” intrinsecamente as suas origens.
Em suma, os bastidores do mise-en-scène (eurocêntrico) são desvelados por uma sequência ecológica de vivencias, saberes, depoimentos, relatos, factualidades e imagens que por si só desintegram, quaisquer cenários e arranjos construídos e montados pela perspectiva do princípio európico, tão presentes (por não pouco tempo) na historiografia, como voz dominante (e porque não dizer) e unilateral na esteira da história
Ora, quem não conhece a história[1], está condenado a repeti-la e comprometê-la. É por isso que apesar dos “preconceitos” (frutos de uma ignorância) que ainda recaem nos povos africanos e na afro cultura brasileira, o documentário nasce com o intuito de desconstruir uma série de percepções equivocadas a respeito dessas culturas.
É importante salientar que a sensibilidade dos produtores ao alternar as paisagens geográficas, bem como osprotagonistas[2] em seus “contextos de fala” na película, além de mostrar que distancias não podem dissipar os elosintercontinentais e intergeracionais estabelecidos pela religião, também dão conta de mostrar que o imprinting cultural uma vez estabelecido não pode ser apagado.
Enfim, as origens do jêje-nagô nos barracões de candomblé em Salvador, bem como do Tambor de Minas no Maranhão, comprovam a tese do historiador Victor Leonardi e do Diretor Renato Barbieri de que o Brasil e África estão mais conectados do que se pensa. Como diz o narrador no intróito do filme: “A África faz parte do imaginário brasileiro e é um dos nossos mais ricos e misteriosos mitos”.
PAULO MAZAREM
TEÓLOGO E CIENTISTA DA RELIGIÃO.
FLORIANÓPOLIS
REFERÊNCIA:
Documentário atlântico negro na rota dos orixás. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=2I0gjOhcZ-o&t=27s > Acesso em: 20 dez. 21
[1] o “tráfico negreiro” num espaço de três séculos e meio, trouxe aproximadamente quatro milhões de negros para o Brasil.
[2] Pai Euclides, babalorixá da Casa Fanti Ashanti, em São Luís do Maranhão e vodunon Avimanjenon, chefe do Templo de Avimanje, em Ouidá, cidade de onde partiram incontáveis navios negreiros para Salvador.
Comentários
Postar um comentário